Onsi A. Kamel
Como todos os relatos da fidelidade de Deus, o meu começa com uma genealogia. No final do século dezessete, os ancestrais Congregacionalistas de minha mãe viajaram para o Novo Mundo para escapar do que consideravam um compromisso mortal da Inglaterra com o Romanismo. Séculos depois, os Presbiterianos Americanos converteram a bisavó de meu pai, da Ortodoxia Copta para o Protestantismo. Seu filho tornou-se um ministro Presbiteriano na Igreja Evangélica Copta. Já em meus pais que moravam em Illinois no século 21, os compromissos Reformados históricos de suas famílias foram substituídos por evangelicalismo Batista não denominacional.
Esta forma de Cristianismo dominou minha cidade natal no meio-oeste. Meus pais me ensinaram a amar a Deus, reverenciar as Escrituras e buscar a verdade por meio da razão. No ensino médio, meu pai me apresentou à teologia e, como um presente de aniversário de dezesseis anos, ele arranjou um encontro entre mim e um filósofo católico — do ensino médio à faculdade, o filósofo me apresentou ao pensamento Católico e gentilmente me ajudou a resolver minhas dúvidas sobre o Cristianismo. Como poderia um Deus justo e amoroso não se revelar igualmente a todos? O que devemos fazer com as histórias da criação da Bíblia e a narrativa do dilúvio? O Calvinismo fez de Deus o autor do mal? Minha convivência com esse filósofo marcou minha trajetória intelectual por vários anos.
As causas de qualquer conversão (ou quase conversão) são muitas e confusas. Devo colocar em primeiro plano fatores psicológicos e sociais, ou meu raciocínio teológico? Certos elementos de minha atração pelo Catolicismo eram adolescentes, como a atração de um radical dos anos sessenta por Marx ou a de um ativista contemporâneo pela interseccionalidade: eu pretendia preservar as crenças centrais de minha educação enquanto fugia de suas expressões burguesas. Quando cheguei à Universidade de Chicago, sabia apenas o suficiente sobre o Calvinismo para desprezá-lo, ou seja, eu sabia muito pouco. Reagindo contra os líderes de meia-idade do inaptamente chamado “Movimento Jovem, Inquieto e Reformado”, busquei refúgio naquela outra grande tradição teológica Ocidental: o Catolicismo Romano.
Durante meu primeiro ano de faculdade, envolvi-me na vida Católica do campus. Por meio da influência do grupo de estudantes Católicos e do Instituto Lumen Christi, que hospeda palestras de intelectuais Católicos, meus amigos de faculdade com inclinação teológica começaram a se converter ao Catolicismo, um após o outro. Esses amigos eram devotos, inteligentes e instruídos em história Cristã. Conheci padres católicos santos e fiéis – um dos quais defendeu bravamente a fé durante anos, atraindo a oposição punitiva de seus próprios superiores religiosos, bem como a ira do arcebispo de Chicago. Esse padre foi e é para mim o próprio modelo de homem santo, justo e corajoso.
Eu amava o Catolicismo porque os Católicos me ensinaram a amar a Igreja. Nos eventos da Lumen Christi, ouvi sobre santos e místicos, ascetas e monges, padres do deserto e teólogos da antiguidade tardia. Fui cativado pelos santos mártires, as relíquias, Maria e a Missa. Encontrei na Igreja uma mãe espiritual e mãe de todos os fiéis. Através do Catolicismo, eu recebi uma herança: um passado de santos e pecadores redimidos de todos os cantos da terra, teólogos que iluminaram as coisas profundas de Deus, música e arte que convocam os homens a adorar a Deus “na beleza da santidade” e uma tradição para me colocar em um mundo de fluxo.
O Catolicismo Romano, que considerei o Cristianismo da história, era um mundo à espera de ser descoberto. Comecei a explorar e tentei trazer outros junto. Debati sobre a tradição com minha mãe, o Sola Scriptura com minha então noiva (agora esposa), e o significado da Eucaristia com meu pai. Em certa ocasião, um professor Reformado dispensou meus argumentos a favor da transubstanciação em questão de minutos.
Não muito depois disso, comecei a notar discrepâncias entre o mapa da tradição dos apologistas católicos e o terreno que encontrei na própria tradição. A doutrina da justificação de Santo Ambrósio soava muito mais como a sola fide de Lutero do que com a de Trento. O ensinamento de São João Crisóstomo sobre o arrependimento e a absolvição – “Chore e anule o pecado” – teria ficado mais à vontade em Genebra do que em Paris. A doutrina da predestinação de São Tomás de Aquino, para meu horror, era quase idêntica à do Sínodo de Dort. O teólogo e bispo anglicano Richard Hooker citou Irineu, Crisóstomo, Agostinho e o Papa Leão I ao rejeitar as doutrinas e práticas porque não estavam fundamentadas nas Escrituras. Ele citou o Papa Gregório, o Grande, sobre o título “ímpio” de bispo universal. O Concílio de Niceia presumiu que Alexandria estava no mesmo nível de Roma, e o Concílio de Calcedônia no século 4 declarou que o patriarcado Romano era privilegiado apenas “porque [Roma] era a cidade real”. Em suma, comecei a me perguntar se os Reformadores tinham uma reivindicação legítima aos Padres. A Igreja de Roma não poderia ser identificada diretamente como católica.
John Henry Newman tornou-se meu interlocutor crucial: Mais do que em Ratzinger, Wojtyla, ou Congar, em Newman encontrei uma alma gêmea. Aqui estava um homem obcecado pelas mesmas questões que me consumiam, questões de tradição e autoridade. Com Newman, eu agonizava com a conversão. Devorei seu Ensaio Sobre o Desenvolvimento da Doutrina Cristã e sua Apologia pro Vita Sua. Duas de suas ideias foram fundamentais para mim: sua teoria do desenvolvimento doutrinário e sua articulação do problema do julgamento privado. Destas duas ideias dependiam todas as reivindicações de Roma.
Em retrospecto, vejo que a necessidade de Newman de construir uma teoria do desenvolvimento doutrinário vai contra as reivindicações de Roma de continuidade com a Igreja antiga. E na época, embora eu desejasse aceitar a proposta de Newman de que “a condição inicial e a evidência de cada doutrina, deve ser consistentemente interpretada por meio daquele desenvolvimento que foi finalmente alcançado”, eu não poderia fazê-lo. Só poderíamos justificar tais suposições se já estivéssemos comprometidos com a doutrina Católica Romana e com a continuidade significativa de Roma com o que veio antes. Sem qualquer um desses compromissos, eu simplesmente não conseguia encontrar uma razão plausível para falar de “desenvolvimento” em vez de “disjunção”, especialmente porque o que veio antes muitas vezes contradizia o que se seguiu depois.
O truque da autoridade eclesiástica era mais complicado para mim. Reconheci o absurdo de um jovem de vinte anos que tem a pretensão de julgar alegações sobre as Escrituras e dois mil anos de história. Os argumentos de Newman contra o julgamento privado, portanto, tinham uma plausibilidade prima facie para mim. Em sua Apologia, Newman argumenta que a rebelião do homem contra Deus introduziu uma “condição anárquica das coisas”, levando o pensamento humano a “excessos suicidas”. Consequentemente, a adequação de uma voz viva divinamente estabelecida que proclama infalivelmente verdades sobrenaturais. Em seu discurso sobre “Fé e Julgamento Privado”, Newman castiga os protestantes por se recusarem a “render” a razão em questões religiosas. A implicação é que a razão não é confiável em questões de revelação. Fé é concordar com a verdade incontestável e evidente da revelação de Deus, e o raciocínio se torna uma desculpa para recusar dobrar os joelhos.
Quanto mais eu internalizava as afirmações de Newman sobre o julgamento privado, mais eu caía no ceticismo. Eu não conseguia interpretar com segurança as Escrituras, a história ou a Palavra de Deus pregada e dada nos sacramentos. Mas se eu não pudesse fazer essas coisas, se minha razão fosse inadequada em questões religiosas, como poderia avaliar os argumentos de Newman a favor do Catolicismo Romano? O próprio Newman certa vez reconheceu esse dilema, escrevendo em uma carta pré-conversão: “Temos um horror muito grande do princípio do julgamento privado para confiar nele em uma questão tão imensa como a de mudar de uma comunhão para outra.” Se ele esperava que eu perdesse a faculdade pela qual julgo reivindicações de verdade, por que essa faculdade é falível? Minha conversão teria que estar enraizada em meu julgamento particular, mas, por causa da alegação de infalibilidade de Roma, a conversão me proibiria de exercer essa faculdade novamente em questões doutrinárias.
Finalmente, as lutas internas entre os Católicos tradicionalistas, conservadores e liberais deixaram claro que os Católicos não ganharam com seu magistério uma voz viva e clara da autoridade divina. Receberam do passado um conjunto de documentos magisteriais que tiveram de ser pesados e interpretados, muitas vezes comparados a prelados vivos. O magistério de épocas anteriores apenas multiplicou os textos que cada um tinha de interpretar por si mesmo, pois os bispos vivos, ao que parece, são tão ruins na leitura quanto o resto de nós.
Mas não permaneci protestante simplesmente porque não podia me tornar católico. Enquanto eu estava descobrindo que o Catolicismo Romano não podia ser identificado diretamente com o Catolicismo dos primeiros seis séculos (nem, em certos aspectos, com o do século sétimo ao décimo segundo), e como eu estava lutando com Newman, finalmente comecei a ler os Reformadores. O que encontrei me chocou. A essa altura, o Catolicismo havia reorientado minhas preocupações teológicas em torno das preocupações da Igreja Católica. Minhas suposições e as questões que me animaram eram as da Igreja da história. Minha formação evangélica me levou a acreditar que o Protestantismo acarretava a rejeição dessas preocupações. Mas essa noção explodiu ao entrar em contato com o Protestantismo da história.
Martinho Lutero, João Calvino, Richard Hooker, Herman Bavinck, Karl Barth – eles lutaram com as preocupações da Igreja Católica e forneceram respostas às perguntas que o Catolicismo me ensinou a fazer. Richard Hooker interpretou as tradições da Igreja; Calvino seguiu o agostinianismo de Lutero, proclamou a Igreja visível como a mãe dos fiéis e reivindicou para a Reforma a tradição exegética da Igreja; Barth me convenceu de que a Palavra de Deus poderia falar, certa e seguramente, além de todas as realidades criadas, para mim.
O Catolicismo me ensinou a pensar como um Protestante, porque, como se viu, os Reformadores pensaram como Católicos. Como seus oponentes alinhados ao papa, eles fizeram perguntas sobre a justificação, a autoridade da tradição, o modo de doação de Cristo na Eucaristia, a natureza da sucessão apostólica e o manejo das chaves pela Igreja. Como seus oponentes, os protestantes apelaram para as Escrituras e a tradição. Com o tempo, descobri que suas respostas não eram apenas plausíveis, mas mais fiéis às Escrituras do que as respostas Católicas, e pelo menos tão bem representadas nas tradições da Igreja.
Os Protestantes fizeram mais que superar os Católicos no Catolicismo. Eles também atendiam às necessidades mais profundas das almas pecaminosas. Nunca esquecerei o momento em que, como Lutero quinhentos anos antes, descobri a justificação pela fé somente por meio da união com Cristo. Eu estava sentado no meu dormitório, sozinho. Tinha recebido as Explicações de Lutero sobre as Noventa e Cinco Teses, e eu esperava achar fácil. Um ou dois anos antes, eu havia decidido que Trento estava certo sobre a justificação: era inteiramente um dom da graça consistindo no aperfeiçoamento gradual da alma pela fé e pelas obras – Deus instigando e eu cooperando. Durante anos, tentei viver esse modelo de justificação. Eu ia à Missa regularmente, rezava o rosário com meus amigos, jejuava frequentemente, lia as Escrituras diariamente, orava fervorosamente e buscava conselhos de diretores espirituais. Eu tinha começado esta árdua cooperação com a graça de Deus cheio de esperança; no momento em que me sentei naquele dormitório sozinho, estava perturbado e desmoralizado. Eu havia aprendido como eu era um pecador miserável: nenhuma boa obra era isenta de orgulho, nenhum arrependimento era acompanhado de expectativas de pecado futuro, nenhum amor isento de egoísmo.
Nesse estado, peguei meu exemplar daquele arqui-herege Lutero e li sua explicação da Tese 37: “Qualquer verdadeiro cristão, vivo ou morto, participa de todas as bênçãos de Cristo e da igreja; e isso é concedido a ele por Deus, mesmo sem cartas de indulgência.” Com essas palavras, Lutero transformou meu entendimento da justificação: todo cristão possui Cristo, e possuir Cristo é possuir toda a justiça, vida e méritos de Cristo. Cristo juntou-se a mim mesmo.
Eu tinha me revestido de Cristo no batismo e, pela fé por meio da obra do Espírito, todas as coisas eram minhas, e eu era de Cristo, e Cristo era de Deus (Gl 3:27; 1 Cor. 3:21-23). Não foi uma misericórdia incerta; não foi uma graça em partes, que se esperava que se tornasse um todo; não foi uma salvação a ser alcançada, como se já não fosse também uma possessão presente. Naquele momento, a alegria da minha salvação se derramou em minha alma. Eu chorei e dei louvor a Deus. Eu tinha finalmente descoberto o verdadeiro fundamento e poder do Protestantismo: “O meu amado é meu, e eu sou do meu amado” (Cantares 2:16). Roma me trouxe para a Reforma.
FONTE: https://www.firstthings.com/article/2019/10/catholicism-made-me-protestant
Tradução: Douglas Moura
Revisão: Thaís Gerhardt