Lições da História da Igreja Inglesa (J.C.Ryle)

Lições da História da Igreja Inglesa-castelo-forte-capaTexto escrito por

J.C.Ryle

1° Bispo da Diocese da Igreja da Inglaterra em Liverpool

Como o 15° Capítulo do livro “Princípios para os clérigos

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Temo que o título deste artigo não seja muito atraente ou convidativo. História é notoriamente considerada uma matéria árida, maçante e desinteressante. É embaraçoso o fato relatado no livro de Ester, que na noite em que o Rei Assuero não conseguia dormir, ordenou a seus servos que lhe lessem “o livro dos feitos memoráveis”[1] (Ester 6.1, ARA).

Mas certamente não deveria ser assim. O estudo da História, e especialmente da História da Igreja, deveria sempre interessar à mente do cristão. Que é a História, se não o ensino da Filosofia através do exemplo? Como observam os sábios, a História costuma se repetir. O que mais pode nos mostrar o que esperar da natureza humana em nossos tempos, senão as obras da natureza humana no passado? Permitam-me mostrar aos meus leitores que há lições interessantes a serem aprendidas da História da Igreja da Inglaterra.

Escolhi este assunto em particular por causa dos tempos em que vivemos, e da posição crítica em que se encontra a Igreja da Inglaterra. É notório que a Igreja estatal se encontra dispersa, encabulada e quase que rasgada ao meio pela ascensão e progresso do movimento que se vem chamando de Ritualismo. O crescimento dessa escola de pensamento dentro de nossas fileiras, calcula-se, tem causado sérios danos a nossa amada Igreja. Como refreá-lo mais sabiamente, e fazê-lo com o maior sucesso, é assunto que requer a total atenção de todos os membros fieis da Igreja. Fornecer a estes bons argumentos históricos pelos quais o ritualismo deve ser resistido, mostrar-lhes bons motivos pelos quais deve ser firmemente rejeitado, é o grande objetivo deste tratado.

Não preciso dizer que o primeiro e maior argumento a ser usado contra o ritualismo, ou qualquer outro erro religioso, é a Bíblia. “À lei e ao testemunho!” Que dizem as Escrituras? Se os defensores do ritualismo puderem nos mostrar que seus postulados específicos, a saber, a presença real[2], a prática da confissão auricular, o uso de incenso, paramentos sacrificiais, procissões, velas sobre a Mesa da Comunhão, a adoração dos elementos consagrados da Ceia do Senhor, são coisas ensinadas no Novo Testamento e praticadas pelos Apóstolos, eu estarei pronto a me tornar um ritualista hoje mesmo. Mas jamais puderam fazê-lo e jamais poderão. Estas coisas não estão na Bíblia.

O segundo argumento a ser usado contra o ritualismo é a confissão de fé adotada pela Igreja, os Trinta e Nove Artigos. Estes Artigos são claramente reconhecidos pela legislação da Inglaterra como o padrão de sã doutrina da Igreja. O testemunho destes Artigos a respeito dos principais pontos do credo ritualista é decididamente protestante e evangélico. Os defensores do ritualismo sabem disto muito bem! Não admira que eles chamem os Artigos de “os quarenta açoites menos um”.

O terceiro argumento contra o ritualismo é o manual oficial de devoções da Igreja, o Livro de Oração Comum. Que ao bom e velho Livro, nas palavras de seu próprio Prefácio, “seja permitido tão justo e favorável desenvolvimento quanto se deve, por equidade, a todos os escritos humanos”. Seja ele interpretado de forma justa, honesta e equânime, com toda a luz das bem conhecidas posições de seus compiladores e das explicações lançadas sobre ele ao longo de três séculos, e não temeremos o resultado. Que os defensores do ritualismo, por exemplo, nos mostrem uma única frase na Liturgia da Comunhão em que a Mesa da Comunhão seja chamada de “altar”, ou que a Santa Ceia seja chamada de “sacrifício”, ou seja admitida a “adoração” dos elementos consagrados. Que eles expliquem, se puderem, aquela incisiva Rubrica que conclui o Serviço da Comunhão, e declara que “o corpo e o sangue físicos de Cristo, nosso Salvador, estão no céu, e não aqui”, e que “o pão e o vinho sacramentais permanecem em suas substâncias naturais, de modo que não podem ser adorados, pois isto seria idolatria, que deve ser abominada por todos os cristãos fieis”[3]. Não hesito em dizer que o erro a respeito da doutrina da Santa Ceia é o fundamento de todo o sistema ritualista[4]. Erro ao qual o Livro de Oração, corretamente interpretado, não dá qualquer margem.

Mas, no final das contas, há mais um argumento contra o ritualismo que raramente recebe a atenção merecida. Trata-se do argumento a ser encontrado nas lições da História da Igreja da Inglaterra. Demonstrar quais sejam essas lições e mostrar as conclusões a que um estudo imparcial da História inglesa deve levar toda mente isenta é o objetivo a que me proponho neste texto.

Permitam-me começar esclarecendo o que estou prestes a fazer. Não suponha o leitor que pretendo me embrenhar nas selvas obscuras da antiguidade, ou entulhá-lo com um árido tratado a respeito de tempos pré-históricos. Quer Paulo tenha pregado na Inglaterra ou não, quer tenha existido uma pujante Igreja britânica na antiguidade ou não, quer Agostinho de Cantuária tenha sido um homem apostólico ou um enxerido ambicioso, quer tenha existido uma fé verdadeira nos dias de Alfredo, de Beda, de Edmundo, de Canuto, de Haroldo e de Guilherme o Conquistador, são todas questões que deixarei de lado. Devo me limitar estritamente à História da Igreja dos últimos seiscentos e cinquenta anos, um período do qual a Reforma fica bem no meio. Da história desses 650 anos eu tentarei extrair cinco boas lições, lições edificadas sobre grandes, largos e inconfundíveis fatos, que me parecem tão claros aos olhos quanto o sol ao meio-dia. Se meus leitores os considerarão interessantes ou não, não sei. Se não, só posso declarar minha crença de que a culpa não será dos fatos, mas do meu jeito de expô-los.

  1. O primeiro período da História da Igreja da Inglaterra do qual tirarei lições consiste dos trezentos anos anteriores à Reforma Protestante. É um período que vem do reinado de Henrique III ao de Henrique VIII. É um período em que a Igreja desta terra era total, inteira e completamente católica romana, quando o Bispo de Roma era a cabeça espiritual da Igreja, quando o romanismo reinava supremo da Ilha de Wight a Berwick-on-Tweed, e de Land’s End até North Foreland[5], quando os ministros da religião e o povo eram todos igualmente papistas.

Qual é a lição que pretendo tirar desse período? Ora, é simplesmente esta: que a religião inglesa nunca esteve em uma situação tão má e tenebrosa quanto nos dias em que o romanismo dominava totalmente a Inglaterra.

Os fatos que provam a veracidade dessa afirmação são tão dolorosamente numerosos que é difícil dizer onde começar e onde concluir, quais selecionar e quais deixar de lado. Não é exagero dizer que, nos trezentos anos anteriores à Reforma, o cristianismo na Inglaterra parecia estar soterrado sob uma massa de ignorância, superstição, sacerdotalismo e imoralidade. A semelhança entre a religião dessa época e a era apostólica era tão pequena que se Paulo ressuscitasse dos mortos, dificilmente a chamaria sequer de cristianismo.

Quanto à ignorância, não havia Bíblias em inglês na terra, exceto algumas no tempo de Wycliffe, e poucos dos sacerdotes podiam dizer às pessoas o que a Bíblia continha. Os fatos que foram trazidos à luz na visita de inspeção do Bispo Hooper à Diocese de Gloucester nos dias de Eduardo VI são prova suficiente do que digo. De 311 ministros da Diocese, ele encontrou 168 incapazes de recitar os Dez Mandamentos! O assim chamado culto’ consistia de ofícios em latim, dos quais ninguém entendia quase nada, missas, orações à Virgem e aos santos. A religião prática, a devoção da maioria dos leigos, era composta de dar esmolas ocasionalmente, assistir à missa, praticar penitência, receber a absolvição e, no final, a extrema-unção. Quase não havia pregação, e a pouca que havia tinha tanta bobagem anti-bíblica que não valia a pena ouvir. Em suma, um período de perceptíveis trevas.

Quanto à superstição, o culto às relíquias, imagens e mortos como Thomas Beckett[6] já diz muito. A fome, como bem sabemos das notícias do último cerco em Paris, faz com que homens famintos se regalem em comer ratos e camundongos, e outras coisas horrendas que se passem por comida. Falta de Bíblia fará o povo aceitar os mais degradantes dogmas como sendo verdade, e o fara se prostrar a objetos de culto dos mais ridículos, monstruosos e profanos.

Quanto ao sacerdotalismo, os truques pelos quais os sacerdotes romanos extorquiam dinheiro dos bolsos do povo e enriqueciam a Igreja, os sinais mentirosos, imposições e falsos milagres são escandalosos demais para se mencionar. O crucifixo de Bexley, que fechava a cara quando os peregrinos ofereciam cobres, mas sorria quando traziam ouro; o pretenso sangue de Cristo na Abadia de Hales; as pretensas penas das asas de anjos; os mantos da Virgem Maria; os fragmentos da verdadeira cruz de Cristo, são suficientes para marcar os sacerdotes que com isso ganhavam dinheiro como tolos ou tratantes.

Quanto à imoralidade, talvez quanto menos se disser, melhor. Abadias, mosteiros e conventos, um clero que não se casava e um laicato ignorante e dominado pelos sacerdotes, a confissão auricular[7] e a absolvição comprada a dinheiro, tudo isso produzia seus frutos naturais. Não havia um só mandamento dos Dez que os homens não passassem por cima com tranquilidade, enquanto tivessem os sacerdotes consigo e permanecessem fieis à Igreja.

Esse retrato dos trezentos anos anteriores à Reforma pode parecer carregado e extravagante. Mas não tenho razões para crer que haja exageros. Quanto mais se estuda a história de maneira verdadeira e autêntica, como as obras de Strype, Burnet e Blunt, mais se verá que se trata de um relato correto e verdadeiro[8].

É claro que meus leitores se lembrarão de que estou falando apenas da condição religiosa da época. Não digo que não havia estadistas hábeis e guerreiros corajosos e honestos nesse tempo. Não duvido de que havia muitos, assim como havia muitos nos anos dourados da Grécia e da Roma pagãs. Não digo que TODO o clero era ignorante, mal preparado ou imoral, nada disso.

Havia bons arquitetos de igreja naqueles tempos. Nossas catedrais e igrejas paroquiais antigas dão ampla prova disso. Ainda hoje não podemos superá-los na construção de templos físicos.

Havia estudantes esforçados e profundos pensadores naqueles tempos. Eruditos como Alexander Hales, em 1240 (doctor irrefragabilis), Roger Bacon, em 1280 (doctor subtilis), Duns Scotus, em 1308 (doctor singularis), William Ockham, em 1347 (doctor singularis), Thomas Bradwardine, em 1350 (doctor profundus), eram conhecidos e respeitados por toda a Europa, embora pouco conhecidos hoje.

Havia bravos opositores da supremacia do Papa, como Robert Grosseteste, Bispo de Lincoln. Havia grandes desmascaradores das corrupções papistas, como John Wycliffe, que preparou o caminho para a Reforma, e fizeram bem nos seus dias. Havia Lollardos[9] espalhados aqui e ali, por toda a Inglaterra, que sustentaram a verdade e pacientemente suportaram muita perseguição.

Mas uma andorinha não faz verão. Homens como esses eram brilhantes exceções, que só tornaram mais visível a escuridão à sua volta. Permanece o fato de que a maior parte do clero e do povo inglês, nos trezentos anos que antecederam a Reforma, estavam em um estado miserável de superstição, ignorância e corrupção. Havia uma absoluta escassez de cristianismo vivo no País. Praticamente a religião da maioria dos ingleses consistia em Mariolatria, culto aos santos e escravidão aos sacerdotes. As verdadeiras doutrinas bíblicas a respeito de Cristo e do Espírito Santo eram quase desconhecidas. A verdade a respeito do arrependimento, fé, conversão e justificação estava tão perdida de vista que é como se nunca tivesse sido conhecida. Se tomasse quaisquer grupo de cem homens nas ruas de Londres, Norwich, Bristol, Exeter, York ou Leicester, e lhes perguntasse “que deve um homem fazer para ser salvo?”, duvido que cinco de cem poderia dar a resposta apostólica correta, se suas vidas dependessem disso.

Assim estava a Igreja da Inglaterra quando o Papa de Roma tinha tudo sob seu controle e o romanismo reinava supremo e tranquilo. Que a lição entre em seu coração e esteja pronta para ser aplicada. Mantenha sua pólvora seca. Não escute a esses que dizem que o grande remédio universal para os males de nossos tempos é um retorno dos princípios do catolicismo. Não escutem, por um momento sequer, àqueles que aconselham um retorno às práticas romanistas e sugerem os benefícios de uma reintegração com Roma! Retornar a Roma! Não consigo imaginar uma situação mais monstruosa, e uma tão totalmente condenada pelo ensino da história e do bom senso.

Digam a esses que aconselham um retorno a Roma, que vocês sabem o que o romanismo fez com a Inglaterra quando ele nela reinava inconteste, e seja isso bastante para vocês. Digam-lhes que o belo “sistema católico”, como o chamam, era o reino da ignorância, do sacerdotalismo, da superstição, da idolatria e da imoralidade, e que vocês não têm qualquer desejo de voltar a ele. Foi experimentado por trezentos anos e falhou; foi pesado na balança e julgado insuficiente. Construiu esplêndidas igrejas de pedra, mas não levantou templos vivos para a glória de Deus. Digam-lhes, em suma, que o remédio universal para os nossos dias não está no ressurgimento das missas, procissões, incenso, mosteiros, conventos, paramentos sacrificiais e confessionários, mas em mais pregação do Evangelho, mais leitura da Bíblia, mais arrependimento, mais fé, mais santidade. Digam-lhes isto, e terão aprendido uma boa lição da História da igreja dos três séculos anteriores à Reforma.

Fatos são fatos, e não há como superar os fatos da História. Quando for correto abandonar a luz pelas trevas e a verdade pelo erro, o conhecimento pela ignorância, a pureza pela impureza, a liberdade pela escravidão, o bem pelo mal, então, e somente então, será o tempo dos membros da Igreja da Inglaterra falarem em reintegração com a infalível e imutável Igreja de Roma. Em face dos fatos da história da Igreja inglesa, digo com audácia que, antes de voltar ao papado, melhor seria a Igreja da Inglaterra acabar de vez.

II A próxima lição da História da Igreja da Inglaterra para a qual quero chamar a atenção de meus leitores é tirada do final do século XVI, no período entre 1530 e 1600. O período abrange os reinados de Henrique VIII, Eduardo VI, Maria a Sanguinária, e Elizabeth I. Neste setenta anos aconteceu a mais poderosa mudança de pensamento e opinião pela qual já passou este reino. As cadeias que os Papas de Roma haviam lançado sobre a Inglaterra foram rompidas e lançadas fora. Os ingleses despertaram de seu longo sono e retornaram ao cristianismo das Escrituras. Em uma palavra, a Inglaterra deixou de ser um país papista e tornou-se protestante.

Agora, que lição quero que aprendam desta parte da História da Igreja inglesa? Ora, apenas esta: quero que tenham firmes em mente que a mudança desses setenta anos é motivo da mais pura gratidão, e que a maior bênção que Deus já concedeu a este País foi a Reforma Protestante. Apeguem-se a essa lição e jamais a deixem.

Infelizmente, temo que uma visão correta da Reforma Inglesa não é mais algo tão comum quanto costumava ser. Levantou-se uma geração nos últimos cinquenta anos que, ou vitupera os Reformadores, ou se vangloria em fazer do vago sentimento de “seriedade”[10] um ídolo, e em tratar todas as diferenças de credos como disputas de palavras. Alguns, em nossos dias, não se envergonham de debochar de Cranmer, Latimer e outros mártires da Reforma, e de se empenhar em denegrir e sujar sua imagem e sua obra. Outros não hesitam em anunciar que acreditam que papistas “autênticos” são tão bons cristãos quanto protestantes “autênticos”, e admiram Erasmo tanto quanto Lutero, Gardiner[11] tanto quanto Hooper[12], e a Rainha Maria tanto quanto o Rei Eduardo VI. Diante dessas estranhas posições, permitam-me alongar-me um pouco a respeito do imenso valor da Reforma Protestante, e deixem-me apontar quão profundamente nós, ingleses, devemos ser gratos por ela.

Admito prontamente muitas coisas aos detratores da Reforma Inglesa. Concedo que os agentes pelos quais ela começou e foi executada eram homens que muitas vezes estavam longe de ser exemplos de vida. Não me ocupo em defender o caráter de Henrique VIII ou os cortesãos de Eduardo VI ou mesmo aquela muito arbitrária senhora, a Rainha Elizabeth I. Não estou pronto a defender tudo o que Cranmer e seus companheiros disseram e fizeram no calor do conflito. Admito livremente que a Reforma nunca foi perfeita e completa, e mesmo os melhores Reformadores não eram homens perfeitos em si mesmos.

Ainda assim, depois de admitir tudo isso, mantenho firmemente que a Reforma Inglesa foi uma enorme bênção, e tenho pena do inglês que não a veja sob esta luz. Digam o que quiserem contra ela, há certos fatos históricos que não podem ser superados, e os encomendo à atenção de todos quantos leem este artigo.

Digo, sem hesitação, que devemos à Reforma a Bíblia em inglês, e a permissão que todos têm de lê-la. Antes da Reforma, a Bíblia estava trancada em uma língua morta, e os leigos eram desencorajados de aprendê-la. À Reforma nós devemos o ressurgimento da verdadeira doutrina do perdão dos pecados pela simples fé na mediação de Cristo. Antes disso, os homens tateavam na escuridão, entre santos e sacerdotes, penitências e absolvições, e jamais encontravam paz para as suas almas. À Reforma devemos o culto em inglês em cada paróquia por todo o País, o qual até o mais pobre homem pode compreender. Antes disso, os sacerdotes repetiam orações em latim, e o povo cultuava por procuração. À Reforma devemos o surgimento de um padrão verdadeiro de santidade prática. Antes dela, o povo acreditava que o maior nível de santidade era tornar-se monge ou freira. À Reforma devemos a afirmação da supremacia das Sagradas Escrituras como única regra de fé e prática. Antes dela, não havia padrão certo, senão o guia incerto que era a “voz da Igreja”. À Reforma devemos o ressurgimento da verdadeira pregação do Evangelho. Antes dela o povo nada podia aprender, senão ritos e cerimônias. À Reforma devemos a compilação de uma das melhores confissões de fé que o mundo já viu, os Trinta e Nove Artigos. Antes dela, poucos cristãos ingleses sabiam claramente em que pensavam ou criam. À Reforma devemos a simplificação, a purificação e a popularização de toda a religião cristã nestes reinos. Antes dela, a verdadeira fé estava soterrada sob uma massa de idolatria, superstição, sacerdotalismo e mistério. Em uma palavra, a dívida que temos para com a Reforma é tão grande que fica difícil não percebê-la. É uma dívida que temos dificuldade em calcular, porque não conseguimos divisar a gravidade do estado de coisas de que a renúncia ao papado nos livrou. Mas isto digo: o que quer que a Inglaterra seja entre as nações da Terra, como um país cristão, qualquer liberdade política de que desfrutemos, qualquer liberdade religiosa que tenhamos, qualquer segurança que tenhamos quanto à nossa vida e propriedade, qualquer pureza e felicidade que tenhamos em nossos lares, qualquer proteção e cuidado pelos pobres, devemos, em grande medida, à Reforma Protestante. Aquele que for incapaz de perceber isto, em minha humilde opinião, ou é muito cego ou é muito ingrato.

Que esta lição da História da Igreja da Inglaterra entre em seus corações, e nunca a esqueçam. Não deem ouvidos aos que, como alguns campeões do ritualismo, se alegram em chamar a Reforma de “Deforma”, debochando dos Reformadores como “vilões não redimidos” que não merecem mais respeito do que Danton, Marat e Robespierre! Esse tipo de linguagem violenta não fere senão àqueles que a usam. É claro que os atuais inimigos de Cranmer, Ridley, Latimer e Hooper podem facilmente apontar suas falhas de caráter e manchas em suas vidas. Eram meros homens, e, assim, imperfeitos. Mas quando forçam sua malícia ao máximo, jamais acharão ingleses que fizeram maior bem em seus dias, viveram melhor, morreram melhor e deixaram melhor marca em seu País do que nossos mártires Reformadores.

De minha parte, quanto mais penso nas enormes dificuldades com que os Reformadores tiveram de lutar, a conduta caprichosa, tirânica e inconstante de Henrique VIII, os tenros anos de Eduardo VI, a sangrenta e cruel perseguição da Rainha Maria, a política arbitrária e negociada da Rainha Elizabeth I, quanto mais penso nestas coisas, mais admiro os Reformadores ingleses. Não me admiro porque tenham feito pouco, mas porque fizeram muito. Não me maravilho porque foram imperfeitos e cometeram erros, mas porque foram quem foram, e fizeram o que fizeram.

Digam o que quiserem, há fatos que dizem mais do que palavras. A Reforma encontrou os ingleses presos em ignorância, e deixou-os possuídos de conhecimento; achou-os sem Bíblias e deixou-os com a Palavra de Deus em cada paróquia; encontrou-os em trevas e deixou-os em relativa luz; encontrou-os escravos do sacerdotalismo e deixou-os desfrutando da liberdade que Cristo concede; achou-os alheios ao sangue da expiação, à fé, à graça e à santidade, e deixou-os com a chave para a posse de tudo isso em mãos; achou-os cegos e deixou-os vendo; achou-os escravos e deixou-os libertos. Para sempre sejamos gratos a Deus pela Reforma! Ela acendeu uma vela que jamais deve ser apagada ou deixada esmorecer.

III A terceira lição da História da Igreja da Inglaterra para a qual eu gostaria de chamar a atenção dos meus leitores é tirada dos cento e cinquenta anos que imediatamente seguiram a Reforma. Esse período abrange os reinados de Jaime I e Carlos I, a Comunidade[13], Carlos II, Jaime II, William e Maria, George I e George II. Nele encontramos alguns dos eventos mais importantes da História da Inglaterra: a queda da Igreja e da Monarquia, a Comunidade, a Restauração, a expulsão dos não-conformistas em 1662, a Revolução que expulsou os Stuarts do trono e o estabelecimento final da tolerância religiosa. No todo, é um período melancólico de nossos anais eclesiásticos. Tenho pena do membro da Igreja que puder estudá-lo sem sentimentos de vergonha, pesar e humilhação.

Agora, que lição posso tirar deste período? Ora, simplesmente esta: Afastar-se dos princípios da Reforma causou dano irreparável à Igreja da Inglaterra.

Que houve um gradual afastamento dos princípios da Reforma durante o século XVII, é certo como qualquer outro fato histórico. Sob a liderança do Arcebispo Laud surgiu na Inglaterra uma escola de membros da Igreja que não escondiam sua total falta de simpatia para com nossos Reformadores, e seu desejo de tornar nossa Igreja menos protestante, menos evangélica, menos calvinista (como diziam) do que era nos dias de Eduardo VI e Elizabeth I. Os teólogos dessa linha de pensamento ficariam horrorizados se fossem chamados de “romanizantes”; mas que eram “desprotestantizantes” é um fato inegável. Quanto às doutrinas da graça, quanto ao Sacramento da Santa Ceia do Senhor, quanto ao ofício do Bispo, quanto à Igreja primitiva e a Tradição, quanto às cerimônias no culto público, quanto à chamada impropriedade de se atacar publicamente o papado, quanto à chamada impiedade do calvinismo, o tom dos teólogos laudianos era peculiar e inconfundível. Seus corações não estavam de todo com os Reformadores. Estudem a literatura religiosa desses tempos e encontrarão que, exceto Hall, Davenant, Usher, Hopkins, e mais uns poucos, não havia quase nenhum membro da Igreja cujos escritos tivessem o pleno sabor da Reforma Protestante. Você sentirá de pronto, ao ler a maior parte da teologia do tempo dos Stuarts, que entrou em uma nova teologia, e está em uma nova atmosfera. Erudição, eloquência, devoção e boa argumentação, tudo isso você encontrará em abundância nas páginas dos teólogos carolinos[14]. Mas sentirá falta do claro, distinto e afiado sistema doutrinário dos pais-mártires da Igreja da Inglaterra e seus sucessores imediatos. Você chegou em novo solo, respira novos ares. E a explicação é bem simples. Por toda a parte, sob os Stuarts, os Bispos e o clero gradualmente decaíram do antigo padrão da Reforma, e eram menos completamente protestantes que os homens dos dias de Eduardo VI e Elizabeth I.

É claro que seria um erro supor que não havia muitos homens bons e conscientes entre os seguidores de Laud e demais líderes da Igreja sob os Stuarts. Havia muitos, creio, que estavam firmemente convencidos de que estavam fazendo um serviço à Igreja ao recuar um pouco dos padrões da Reforma, e que pensaram que estavam apenas adornando a Igreja, tornando-a mais primitiva e mais excelente, porque menos genebrina. Houve muitos que de fato pensaram que a melhor maneira de transformar os homens em membros da Igreja era compeli-los a vir à Igreja, e que a melhor maneira de acabar com a não-conformidade era perseguir os não-conformistas. Mas é um fato curioso e digno de nota nesses tempos, que esses membros da Igreja bem-intencionados parecem ter sido inteiramente cegos às consequências de seu movimento. Parece que jamais se perguntaram quanto à luz em que suas ações seriam encaradas pelas pessoas. Não compreenderam o povo inglês. Acordaram tarde demais para o fato de que eram como crianças brincando com fogo. Descobriram que as consequências de se desviar das veredas antigas, direta e indiretamente, foram desastrosas, maléficas e malignas ao extremo. Permitam-me mostrar quais foram essas consequências.

Primeiro, surgiu, entre os membros das classes média e baixa um espírito de total alienação da Igreja da Inglaterra. A tentativa de forçar a uniformidade falhou completamente, como sempre falhará. Quem cultua deve fazê-lo voluntariamente, e não à força. Espalhou-se por toda a parte a impressão de que os Bispos não eram verdadeiros protestantes de coração, e não se podia confiar neles. A massa do povo inglês começou a desgostar-se com os prelados que eles viam mais ocupados em perseguir puritanos, calar pregadores, fiscalizar o zelo, exaltar as formas, divinizar os Sacramentos e elogiar o papado. Começaram a odiar a própria liturgia, a qual viam empurrada goela abaixo dos homens à força, e o povo perseguido se não orasse fazendo uso dela. A multidão raramente sabe distinguir bem. Ela mede instituições principalmente por seu funcionamento e administração, e pouco liga para teorias e princípios filosóficos. O episcopado sem dúvida era primitivo e apostólico, e a liturgia sem dúvida era venerável e bela. Mas pouco a pouco os ingleses, entre 1600 e 1650, começaram a associar o episcopado com tirania, a liturgia com formalismo e a Igreja da Inglaterra com o papado, multas, prisão e punições. Quando o famoso Longo Parlamento se reuniu no tempo de Carlos I, havia uma dolorosa unanimidade de descontentamento quanto à pobre e velha Igreja da Inglaterra. Os deputados dos condados e distritos, com poucas exceções, viram-se inteiramente de acordo, para variar. Estavam profundamente insatisfeitos com a Igreja Estatal, e os que a combatiam superavam totalmente, em número e influência, os seus defensores. E tudo isso foi o resultado de retroceder dos princípios da Reforma.

Infelizmente, a falta de confiança não foi a única consequência do desvio dos princípios da Reforma. A insatisfação geral culminou afinal com a destruição temporária da Igreja da Inglaterra. Uma revolução eclesiástica aconteceu, que se estabeleceu em uma espécie de reino de terror. Os sentimentos acumulados das classes média e baixa, uma vez à solta, irromperam em um furacão, ante o qual a estrutura da Igreja da Inglaterra foi varrida. Bispos, deões, todo o clero e a liturgia, foram todos removidos como entulho. Boas coisas, assim como as más, sucumbiram em uma mesma ruína. Uma guerra civil sangrenta estourou. Carlos I seguiu Laud e Strafford ao cadafalso. Tudo na Igreja e no Estado ficou de ponta-cabeça. A ordem, afinal, só pôde ser mantida pela mão de ferro de um ditador militar, aquele grande filho de Anaque, Oliver Cromwell. A coroa, a mitra[15] e o Livro de Oração Comun foram todos excomungados e lançados ao pó. E tudo isso foi resultado de desviarem-se dos princípios da Reforma. Os que dirigiram aquele movimento semearem o vento e colheram a tempestade.

Mas também não chegamos ao fim da história. Houve outras consequências indiretas, cujos efeitos sentimos até hoje. Todo o equilíbrio da opinião inglesa a respeito da Igreja da Inglaterra foi completamente desarranjado e perturbado, e o equilíbrio nunca foi completamente restaurado. Um pêndulo foi posto em movimento, que tem oscilado violentamente por duzentos anos. Primeiro, veio uma forte reação em favor da Igreja, quando os Stuarts retornaram ao trono depois da morte de Cromwell, sem ter aprendido nem esquecido nada. Moderação e tolerância foram, então, lançados ao vento, e os episcopais provaram que podiam ser tão intolerantes quanto os não-conformistas da Assembleia de Westminster. A infame Lei de Uniformidade de 1662 foi aprovada, pela qual dois mil dos melhores clérigos da época foram expulsos de nossas fileiras e perdidos pela Igreja para sempre. Então veio um longo e tenebroso período de exaustão e estagnação, durante o qual a Igreja, como uma preguiça entorpecida, sobreviveu pendurada na árvore do Estado, mas mal vivia, se movia ou respirava. E afinal veio o tempo da tolerância universal, quando a não-conformidade foi adequadamente estabelecida, legalizada e arraigada no País para sempre[16], e a Igreja se viu face a face com miríades de dissidentes irritados. E tudo isso foi consequência da Igreja se desviar dos antigos princípios da Reforma Protestante.

Tais são as lições da História da Igreja da Inglaterra no século e meio que se seguiu à Reforma: maldade, irreparável maldade, surgida da política retrógrada de membros zelosos mas mal-orientados da Igreja. Confio que estas lições entrarão nos corações de meus leitores, e que saberão fazer uso delas.

Não ouçam aqueles que, no presente, incessantemente deturpam os puritanos. Muitos tentarão persuadi-los de que os puritanos eram inimigos da Igreja da Inglaterra, fanáticos ignorantes e iletrados que odiavam em conjunto a Coroa, os Bispos e o Livro de Oração. O homem que diz isto apenas mostra sua ignorância dos fatos históricos. Com todas as suas muitas falhas, os puritanos não eram tão sombrios quanto se pinta. Carlos II, em sua declaração de 21 de outubro de 1660, admite que os puritanos não eram avessos, quer ao episcopado, quer a um formulário de orações. Com todos os seus erros e defeitos, os puritanos, como um movimento, eram melhores membros da Igreja em questões de doutrina do que aqueles que os expulsaram da Igreja. Suas obras escritas falam por eles até hoje. Qualquer um com inteligência pode comparar as obras de Laud e Heylin e seus companheiros, com as de Owen, Baxter, Manton, Charnock, Watson, Brooks e seus colegas, e dizer qual grupo de escritores está em mais harmonia com a doutrina dos Trinta e Nove Artigos. De quem o fizer com honestidade, não duvido do resultado que obterá.

Tenha firme em mente que a grande massa de não-conformistas que existiu na Inglaterra desde os dias dos Stuarts até hoje é principalmente o resultado da estúpida e retrógrada política dos Bispos da Igreja da Inglaterra. O grosso dos não-conformistas do século XVII provavelmente jamais teria deixado nossa Igreja, se nossa Igreja não tivesse recuado da Reforma. Eles não tinham uma aversão abstrata pelo Episcopado, pela Liturgia ou pelo princípio da Igreja Estatal. Mas tinham, sim, aversão pela tendência romanizante de nossos prelados, e não cederiam a ela. Se homens como Cranmer, Grindal, Abbot e Jewel tivessem sido os administradores da Igreja, creio que noventa por cento da não-conformidade inglesa não existiria. A culpa, em grande medida, está à nossa porta. Ao recuarmos dos princípios da Reforma, a Igreja cortou suas próprias mãos e arrancou seus próprios olhos, e flagelou-se de uma forma que provavelmente nunca se curará. Para ser franco, noventa por cento da não-conformidade inglesa foi criada e alimentada pela insensatez e infidelidade da própria Igreja. Nos desviamos, primeiro, da Reforma, e regredimos do afiado protestantismo dos Reformadores; então os não-conformistas se afastaram de nós, e passaram a caminhar por conta própria. Se somos enfraquecidos, hoje, pelos grandes grupos de congregacionais[17], presbiterianos e batistas em nossa Pátria, devemos lembrar que a culpa é, primeiro, nossa. Se a Igreja tivesse cumprido com seu dever para com seus filhos, e andado nos passos de Cranmer, Ridley, Latimer e Jewel, seus filhos provavelmente jamais teriam deixado seus apriscos.

  1. O próximo período da História da Igreja da Inglaterra para o qual gostaria de chamar a atenção de meus leitores compreende o intervalo entre 1730 e 1830, e engloba o reinado dos últimos três Georges. É uma era que testemunhou uma mudança religiosa neste País, que só fica atrás da Reforma em importância. Ela testemunhou a ascensão e progresso do que hoje se chama metodismo, e a formação do grupo evangélico na Igreja da Inglaterra.

Agora, qual é a lição que eu quero que tirem desta época? É simplesmente esta: O ressurgimento dos princípios da Reforma no século XVIII foi a salvação do cristianismo inglês.

Poucas pessoas, a menos que tenham examinado com atenção o assunto, têm qualquer ideia do estado baixo e degradado da religião na Inglaterra em meados do século XVIII. Desde a expulsão dos puritanos em 1662, por um período de oitenta ou noventa anos, a Igreja de Cristo na Inglaterra pareceu decair mais e mais a cada ano, até que densas trevas morais e espirituais cobriram a terra. Simples teologia natural, com poucas doutrinas particulares do Evangelho, formavam o padrão de ensino tanto na igreja quanto na capela[18]. Os sermões eram pouco melhores que áridos ensaios sobre moralidade, desprovidos de qualquer coisa capaz de despertar ou converter almas. Infidelidade e ceticismo eram abertamente esposados por muitos no laicato, e arianismo e socinianismo eram descaradamente ensinados por não poucos entre o clero. Bispos eruditos e bem intencionados, como Secker, Butler, Gibson, Lowth, Horne, Lavington e Warburton tinham olhos para ver o mal de seu tempo, mas pareciam impotentes para combatê-lo. Quanto aos escritores moralistas da época, como Addison, Johnson e Steele, não tinham maior influência sobre as massas do que a famosa vassoura da Sra. Partington[19] tinha sobre as ondas do Oceano Atlântico.

É realmente difícil nomear um único traço luminoso capaz de redimir essa sombria imagem da primeira metade do século XVIII. O clero paroquial estava afundado no mundanismo, e não sabia ou se importava com nada relativo à sua profissão. Suas vidas eram, com frequência, imorais, e seus sermões tão indescritivelmente pobres, que os que há impressos são invendáveis, e os que não foram impressos devem ser verdadeiro lixo. A educação para as classes mais pobres era inexistente, e poucas paróquias rurais sequer tinham escolas. Jogatina, duelos, palavrões, profanação do domingo, fornicação e embriaguez não eram considerados pecados pelas pessoas afluentes e, claro, eram considerados de menor importância pelos pobres. Os quadros de Hogarth e os escritos de Fielding, Smollett, Swift e Sterne são prova suficiente da moralidade que prevalecia na época.

Quase nenhuma das boas obras que conhecemos de então eram conhecidas na época. Wilberforce ainda não havia atacado o tráfico de escravos. Howard não tinha reformado as prisões. Raikes não havia fundado as escolas dominicais. Não havia Sociedades Bíblicas, escolas para os miseráveis, missões urbanas, sociedades de socorro pastoral. O espírito da preguiça estava sobre a terra. De um ponto de vista religioso e moral, a Inglaterra estava dormindo pesadamente. Em suma, só se pode ficar maravilhado que os alicerces da Igreja e do Estado não tenham sido completamente destruídos e que o País não tenha sucumbido a sua própria versão da Revolução Francesa.

Ora, o que é que, por Deus, salvou a Inglaterra e mudou a maré de irreligião e imoralidade? A que instrumento somos devedores da imensa mudança que inquestionavelmente ocorreu entre 1750 e 1830, e a enorme melhora na moral e na condição religiosa do País, as quais mesmo os nossos piores inimigos devem reconhecer? Essa é uma das perguntas mais interessantes da História da Igreja Inglesa, e convido sua especial atenção para a resposta.

Os agentes que ressuscitaram o cristianismo inglês de sua condição decaída e quase morta foram uns poucos, na maioria clérigos, a quem Deus moveu na mesma época; e o meio que empregaram foi a pregação dos grandes princípios maiores da Reforma Protestante. George Whitefield, John Wesley, Charles Wesley, William Grimshaw, William Romaine, Henry Venn, Daniel Rowlands, John Berridge e mais uma dúzia de outros ministros que partilhavam a mesma opinião. Estes foram os homens que salvaram a Igreja da Inglaterra da morte. E as armas de sua luta foram as gloriosas doutrinas antigas de nossos Reformadores protestantes. A supremacia das Sagradas Escrituras, a total corrupção da natureza humana, a expiação conquistada para nós pela morte vicária de Cristo, a justificação pela fé, a absoluta necessidade de conversão do coração pelo Espírito Santo, a inseparável ligação entre fé e santidade, a salvação pela livre graça, eram as verdades que os evangelistas do século XVIII saíam a pregar e proclamar. E as encontraram na Bíblia, as encontraram nos Trinta e Nove Artigos, as encontraram no Livro de Oração, nas Homilias[20], nos escritos dos Reformadores. E lá as encontrando, audaciosamente proclamaram aos homens que estas eram as veredas antigas da verdade, e ao fazê-lo, viraram o mundo de ponta-cabeça. Sim! Sem dinheiro, sem mecenato[21], sem os Bispos, sem a imprensa, sem o Exeter Hall[22], eles realizaram uma revolução espiritual!

O tamanho do bem promovido por esses valentes evangelistas provavelmente não será totalmente conhecido até o fim dos tempos. A princípio, os Bispos e a nobreza reagiram com desprezo; os homens letrados os ridicularizavam como fanáticos; os engraçadinhos contavam piadas e inventavam nomes espertinhos para eles; a Igreja fechou suas portas a eles; os velhos Dissidentes também, com frequência, lhes viravam as costas; a multidão ignorante frequentemente os perseguia e atirava coisas neles; mas o movimento prosseguiu, e se fez sentir por todo o País. Muitos foram animados e despertados a pensar sobre religião, muitos se envergonharam de seus pecados, muitos ficaram paralisados e apavorados por sua própria impiedade, muitos se reuniam e professavam decididamente a fé, muitos se converteram, muitos foram silenciados e provocados a dissimular, em secreto. A pequena muda tornou-se uma árvore frondosa; o pequeno regato tornou-se uma larga correnteza, a pequena faísca tornou-se uma chama ardente. Uma luz foi acesa, de cujos benefícios nós hoje desfrutamos. O sentimento de todas as classes no País a respeito da religião assumiu uma feição totalmente diferente. E tudo isso, lembremos, foi realizado por um ressurgimento das doutrinas da Reforma. Essas foram as doutrinas que viraram a Inglaterra de ponta-cabeça, conquistaram a atenção dos nobres e filósofos, fizeram carvoeiros e lavradores lavar seus rostos sujos com lágrimas, arrebataram milhares como brasas tiradas do fogo, e mudaram o caráter de sua era. Chamem-nas doutrinas simples e elementares, se quiserem; digam, se quiserem, que vocês não veem nada de grande, novo ou marcante a respeito delas; mas permanece o inegável fato histórico que o ressurgimento das doutrinas da Reforma salvou o cristianismo inglês da destruição cem anos atrás[23].

Que esta quarta grande lição da História da Igreja da Inglaterra entre em seus corações e esteja pronta para o uso. Não ouçam aqueles que se orgulham de ridicularizar os líderes evangélicos do século XVIII, desvalorizando o grande trabalho que fizeram.

Alguns, é verdade, nestes últimos dias, nos dirão que Whitefield, Wesley, Romaine, Berridge, Venn e Grimshaw eram homens ignorantes e iletrados, zelotes de mente fechada, que desprezavam os sacramentos e defendiam visões imperfeitas da verdade; fanáticos raivosos que desprezavam o Livro de Oração Comum e não ligavam para nada a não ser a pregação; entusiastas de cabeça quente que não acrescentavam qualquer conteúdo em seus sermões, mas apenas “feriam os ouvidos do povo com o volume excessivo de sua voz.” Aconselho meus leitores a não dar atenção a tais acusações. Aqueles que as fazem apenas expõem sua ignorância de fatos simples.

Quanto à erudição, os Reformadores do século XVIII foram quase todos alunos de Oxford e Cambridge, e alguns deles, pesquisadores e membros de sua administração. Romaine e os irmãos Wesleys eram bem conhecidos em Christ Church, Oxford. Berridge, formado em Clare Hall, Cambridge, foi um dos primeiros de sua turma. Eram todos tão bem instruídos quanto a maior parte do clero de seus dias, e certamente tinham mais cérebro que muitos dos que hoje se riem deles.

Quanto a desprezarem os Sacramentos, é totalmente falso. Não posso encontrar um dentre eles que não desse grande importância à Santa Ceia e não a defendesse em sua devida proporção a seus ouvintes. Duvido que haja um único pároco ritualista em toda a Inglaterra que tenha tantos comungantes assíduos quanto Grimshaw tinha em Haworth. A diferença entre os Reformadores do século XVIII e muitos de seus detratores modernos é simplesmente esta: eles não aconselhavam ninguém a se fazer comungante a menos que se arrependesse e cresse!

Quanto a negligenciar todas as partes do culto religioso exceto a pregação, novamente a acusação é totalmente falsa. Ninguém dava mais valor ao Livro de Oração e o lia de forma mais impressionante do que Whitefield, Rowlands e Romaine. Suspeito que congregação nenhuma em nossos dias cante melhor ou mais sinceramente do que as deles. Talvez eles não tivessem Hymns Ancient and Modern[24], mas tinham entre eles grandes autores de hinos como Charles Wesley, Toplady e John Newton. Mesmo hoje os ritualistas são obrigados a confessar a beleza de seus hinos. Se não gostam de suas doutrinas, não têm vergonha de empregar seus “cânticos espirituais”.

Grandes templos góticos, eu reconheço que os Reformadores do século passado não construíram. Eles não tinham dinheiro para isso, e mesmo que tivessem, sua época não produziu arquitetos para projetá-los. Mas atrás deles, havia muitos templos do Espírito Santo. Mil vezes melhor ter capelas feias de tijolos cheios de pedras vivas do que grandes catedrais cheias de frieza, cerimonial histriônico, superstição e formalismo.

Uma vez mais eu digo, não desprezemos os homens que ressuscitaram as doutrinas da Reforma no século XVIII. Quaisquer que sejam suas falhas e fraquezas, eles salvaram a vida da Igreja da Inglaterra, e sem eles a Igreja Estatal não teria sobrevivido até hoje. Se Bispos de mente fechada e clérigos cegos não os tivessem esnobado e lhes feito oposição, teriam feito ainda maior obra do que fizeram. Mas pelo que fizeram, demos graças a Deus, e jamais deixemos de lhes dar a honra que merecem.

  1. O quinto e último período da História da Igreja da Inglaterra para o qual quero chamar sua atenção é o que se estende de 1830 até os dias de hoje. É uma época caracterizada por um grande e principal traço. E este é a ascensão e progresso desse estranho movimento romanizante dentro da Igreja da Inglaterra, que, corretamente ou não, é chamado ritualismo.

Ora, qual é a lição que eu peço a meus leitores que tirem desta época? Respondo honestamente que não falarei de lição alguma. Estamos todos no meio do conflito. Somos maus juízes do que se passa ao nosso redor. Mas direi das conclusões a que cheguei, em meu próprio juízo. E estas conclusões são simplesmente que o ritualismo é um novo afastamento dos princípios da Reforma e um movimento em direção a Roma, e como tal, põe em risco a própria existência da Igreja da Inglaterra.

Uma questão surge logo de início nesta parte de meu estudo, que exige consideração. O movimento chamado ritualismo é um movimento em direção a Roma ou não? Os ritualistas realmente desejam suprimir o protestantismo e reintroduzir o papado? Centenas de membros simples e bem-intencionados da Igreja respondem que não. Querem crer que os ritualistas só estão buscando um cerimonial mais ornamentado do que outros membros da Igreja, e que não são romanizantes em seus corações. Com estes amigáveis defensores eu não tenho qualquer simpatia. A questão é uma na qual não sinto qualquer espécie de dúvida. Que o ritualismo é um movimento em direção a Roma, e que leva ao papado, está tão claro em minha mente quanto o sol ao meio-dia. As provas, em minha humilde opinião, são claras, plenas e irretorquíveis.

Está provado pelos escritos dos principais ritualistas de nossos dias. Que todo membro honesto e imparcial da Igreja estude os jornais Church Times e Church Review, leia alguns dos “Catecismos” e “Manuais de devoção” publicados por clérigos ritualistas, leia os debates e atas de organismos como a English Church Union e nos diga claramente qual a impressão que esses escritos lhe causam. Desafio-lhes a evitar a conclusão de que o ritualismo é a estrada para Roma.

Isso está provado pela repetida secessão de ritualistas da Igreja da Inglaterra para a Igreja de Roma. Por que homens como Manning, Newman, Oakley, os dois Wilberforces, Orby Shipley e Luke Ribington partiram para o arraial do Papa? Simplesmente porque entenderam que os princípios de sua escola não lhes poderia fazer chegar a outra conclusão. Mas sua migração é apenas mais uma prova de que o ritualismo é a estrada para Roma.

Está provado pela repetida referência à questão feita pelos Bispos a suas Dioceses nos últimos cinquenta anos. Suaves, gentis e conciliatórios ao extremo como tais documentos frequentemente têm sido, é impossível não notar como nossos prelados detectam uma tendência romanizante no ritualismo. Suas advertências aos ritualistas, vocês notarão, são quase sempre no mesmo sentido. “Cuidado”, eles dizem, “que vocês não vão longe demais em direção a Roma. Vocês são homens excelentes, autênticos, úteis; mas não cheguem perto demais do abismo. Seu perigo é cair direto nos braços de Roma”.

Isso está provado pelo júbilo dos próprios católicos romanos a respeito do movimento ritualista, e o desgosto com o que é encarado pelos presbiterianos escoceses, pelos não-conformistas da velha guarda e pela maioria dos metodistas ingleses. Tanto a alegria de um lado quanto o desgosto do outro derivam da mesma causa. Ambos veem claramente que o ritualismo põe em jogo o protestantismo e avança a causa do Papa.

Isso está provado, acima de tudo, pelo caráter invariável de todas as inovações cerimoniais que os ritualistas lançaram sobre o culto de nossa Igreja durante os últimos vinte e cinco anos. Todos foram na mesma direção, quer na paramentação, quer no gestual, quer na postura, quer em qualquer outra coisa. Todos têm sido o mais não-protestantes possíveis. Todos foram emprestados ou imitados do papado. Todos mostram uma predisposição e ânimo em comum; um ansioso desejo de se afastar tanto quanto possível dos caminhos dos Reformadores, e se aproximar, tanto quanto possível, legalmente ou ilegalmente, dos caminhos de Roma. Todos mostram uma determinação comum e sistemática de desprotestantizar, tanto quanto possível, o culto simples da pobre e velha Igreja da Inglaterra, assimilar, tanto quanto possível, o extravagente e exuberante culto do papado. Um breve catálogo de exemplos demonstrará o que quero dizer.

a) Os Reformadores encontraram, em nossa Igreja, o sacrifício da missa. E o lançaram fora como uma “fábula blasfema e perigoso engano”, e chamaram a Santa Ceia de Sacramento. Os ritualistas reintroduziram o termo sacrifício, e se gloriam em chamar a Santa Ceia de missa!

b) Os Reformadores encontraram altares em todas as nossas igrejas. Ordenaram que fossem removidos, que a palavra “altar” fosse eliminada totalmente de nosso Livro de Oração, e se falasse apenas na Mesa do Senhor. Os ritualistas se deleitam em chamar a Mesa do Senhor de “altar”, e mesmo em edificar altares papistas em suas igrejas!

 

c) Os Reformadores encontraram nosso clero como sacerdotes sacrificadores e os transformaram em ministros que leem orações e pregam; ministros da Palavra de Deus e de seus Sacramentos. Os ritualistas se gloriam em chamar cada ministro de sacerdote sacrificador!

 

d) Os Reformadores encontraram em nossa Igreja a doutrina da presença real, corpórea, e entregaram suas vidas em oposição a ela. Não permitiriam que a expressão “presença real” sequer figurasse em nosso Livro de Oração. Os ritualistas reintroduziram essa doutrina e honram os elementos consagrados da Santa Ceia como se o corpo e o sangue naturais de Cristo estivessem neles.

 

e) Os Reformadores encontraram em todas as nossas igrejas imagens, coros-altos[25], crucifixos e nichos, e indignados, lançaram-nos fora. Os ritualistas incessantemente tentam trazê-los de volta.

 

f) Os Reformadores encontraram nosso culto recheado de procissões, queima de incenso, carregar de bandeiras, velas, gestos, posturas, flores e paramentos sacrificiais extravagantes, e determinaram que tudo isso fosse abandonado. Os ritualistas estão constantemente trabalhando para reintroduzi-los.

Pode alguém em sã consciência duvidar do que tudo isso significa? A palha mostra a direção para onde sopra o vento. As minúcias cerimoniais apontam a correnteza do sentimento religioso. Quem examinar o catálogo de fatos que ora apresentei e ainda disser que não há um pendor do ritualismo em direção a Roma, está além de qualquer argumentação e deve ser deixado de lado. O pior cego é o que não quer ver.

Mas afinal, o ritualismo está causando qualquer mal à Igreja da Inglaterra? Com todas as suas falhas e defeitos, o movimento não tem causado mais bem do que mal? Não é melhor crer em todas as coisas e esperar em todas as coisas, e deixar o ritualismo em paz? São perguntas que muitos, em sua simplicidade, continuamente perguntam, e são perguntas que exigem uma resposta direta.

Alguns nos dizem que o ritualismo ressuscitou a Igreja, uniu o laicato, infundiu um novo espírito à Igreja Estatal, esticou suas cordas, fortaleceu suas estacas. Alguns nos dirão que a existência de um partido ritualista em nossa Igreja é um sintoma excelente e saudável, que os partidos fiscalizam um ao outro e agem como contrapesos, e que a menos que o ritualismo permaneça na Igreja, não temos salvação. Minha opinião é diametralmente oposta. Creio que o ritualismo causou e tem causado dano universal à Igreja da Inglaterra, e que, a menos que refreado ou removido, causará a destruição da Igreja Estatal.

O ritualismo está dividindo o clero em dois partidos bem distintos, e apressando um conflito interno. Enquanto a diferença era apenas entre os partidos High Church e Low Church[26], pouco mal havia. Mas quando a luta passa a ser entre o papado e o protestantismo, a união é impossível. Os dois partidos não têm como cooperar com qualquer proveito no mesmo corpo eclesiástico, e é absurdo supor que têm. Um ou outro está no lugar errado. Que dizem as Escrituras? O próprio Mestre declarou que “se uma casa estiver dividida contra si mesma, não poderá subsistir” (Marcos 3.25).[27]

O ritualismo está roubando de nossa Igreja alguns de seus melhores membros dentre os leigos. Não poucos banqueiros, advogados, médicos, comerciantes e oficiais da Marinha e do Exército estão abandonando nosso navio. Sua confiança está completamente abalada. Não podem compreender uma Igreja Estatal em que o culto seja romanista em uma paróquia e protestante em outra. Estão se desgostando com a continuada tolerância de inovações romanistas, que seu próprio bom senso acusa como contrárias ao espírito da Igreja e anti-escriturísticas. Alguns deles se unem aos Irmãos de Plymouth, outros aos Dissidentes, outros se abstêm de tudo, recusando-se a tomar parte em qualquer assunto eclesiástico. Este estado de coisas é maléfico. A seiva da Igreja está sendo drenada.

O ritualismo está alienando as classes média e baixa da Igreja da Inglaterra. Milhares de comerciantes e fazendeiros e artesãos têm um horror instintivo ao papado. Podem não ser muito inteligentes ou bem instruídos em questões teológicas, mas estão determinados a não tolerar o papado. Não sabem traçar distinções finas, mas sabem dar nomes aos bois e chamar as coisas pelo nome que têm. E se enxergam a menor tentativa de reintroduzir cerimônias papistas em nossas paróquias, suas suspeitas são levantadas, e eles partem para as capelas. O membro da Igreja que dá lugar a que surjam tais suspeitas pode bem ser sincero, bem-intencionado e zeloso, mas não é verdadeiro amigo da Igreja da Inglaterra.

De uma vez por todas, devo honestamente afirmar que meus maiores temores a respeito do ritualismo provêm do efeito que ele tem sobre as consciências das classes média e baixa. Eles não gostam de ritualismo. Eles não o aceitam. Eles o chamam de papismo.

Membros de mente rasa da aristocracia, ascéticos semi-ensinados, membros rebeldes e mal-instruídos de famílias evangélicas, que querem misturar vida noturna e mundanismo com formalismo religioso, compensando um com o outro; mocinhas desocupadas e jovens descerebrados, que apreciam tudo o que é extravagante, sensacional e teatral no culto. Todos esses ficam com o ritualismo e o apoiam com firmeza. São como crianças que admiram mais a papoula do que o milho, e como bebês que ligam mais para os brinquedos do que para a comida. Mas o ritualismo não satisfaz as necessidades das massas trabalhadoras, de mãos e cenho calejados das classes média e baixa, dos artesãos inteligentes, do cérebro e dos músculos da Inglaterra. Estes, sim, preferem alimento para as suas almas e descanso para suas consciências. Consideram a vida dura demais e desgastante demais para se contentarem com ninharias e brinquedos no culto. Se a Igreja só puder lhes oferecer ritualismo, eles vão se desviar dela em desgosto. Se ela fielmente lhes der o Evangelho puro, eles jamais a deixarão, e nunca a abandonarão.

Deixem o ritualismo crescer e se espalhar por mais alguns anos e vejam o fim que virá. A Igreja vai morrer por falta de membros. Generais, coronéis e bandas não fazem um exército, e Bispos, coralistas e clero não sobreviverão se desgostam e afastam suas congregações. A desestatização virá como consequência lógica. A igreja de uma minoria não será poupada na Inglaterra como não foi na Irlanda. Estadistas e oradores declararão que a Igreja Estatal inglesa é uma “enorme anomalia” da qual é necessário se livrar. A voz do povo exigirá nossa destruição e, pelos princípios modernos, ela será obedecida. A Igreja da Inglaterra, uma vez desestatizada, irá rachar em pedaços ou se tornar uma mera seita, como a Igreja Episcopal Escocesa, e as páginas da História registrarão o naufrágio que fez de si mesma na tentativa suicida de recuar do protestantismo e reintroduzir o papado.

Estas são minhas razões para considerar o ritualismo com puro desprezo. Ele ameaça a própria existência de nossa amada Igreja da Inglaterra. Tais são as conclusões a que chego no exame do quinto e último período da História da Igreja inglesa. Se meus temores são corretamente fundamentados e se a lição que tiro é verdadeira, só o tempo dirá. Mas não estarei cumprindo meu dever de homem honesto se não disser a meus leitores que estamos em uma posição crítica, e que o futuro deve ser encarado com grande ansiedade. Em suma, deixo a História da Igreja dos últimos sessenta anos com a firme crença de que, a menos que o ritualismo seja eliminado ou refreado, a Igreja Estatal deste País estará, em alguns anos, estilhaçada em pedaços.[28] Os líderes dos ritualistas, eu admito, podem ser zelosos, autênticos, hábeis, bem-intencionados. Eles podem conscientemente acreditar, como muitos na escola de Laud, que estão prestando um serviço à Igreja da Inglaterra, e realizando a obra de Deus. Mas é minha firme crença que, como a escola de Laud, estão arruinando a Igreja em vez de ajudá-la, e provavelmente pondo a casa abaixo.

Meu artigo deve atingir sua conclusão. Procurei, com o melhor de minhas habilidades, tirar lições de cinco períodos da História da Igreja da Inglaterra: 1. Do período anterior à Reforma; 2. Do período da própria Reforma; 3. Dos dias de Laud e de seu partido; 4. Dos dias do ressurgimento evangélico no século XVIII; 5. Da ascensão e progresso do ritualismo em nossos dias. Em cada um desses períodos sinto que apenas arranhei a superfície de meu objeto de estudo, e poderia ter dito muito mais se o tempo o permitisse. Mas espero, de qualquer forma, ter fornecido algo para se pensar. Agora concluo com algumas palavras de aplicação prática. Tratei de cinco períodos da história da Igreja, e agora ofereço, na condição de amigo, cinco breves conselhos de despedida.

 

  1. Meu primeiro conselho para cada um a cujas mãos chegar este artigo. Leia os grandes fatos da História da Igreja da Inglaterra e familiarize-se com eles. Saiba o que nosso País era quando o Papa reinava supremo; saiba o que a Reforma fez por nós; saiba quais foram e são os princípios da Reforma. Leia livros como Martires, de Foxe; History of the Reformation, de Soames; Church History, de Fuller; History of the Reformation, de Blunt; History of the Puritans, de Marsden. Não menos importante, leia os Trinta e Nove Artigos, pelo menos uma vez por ano. Faça isto e não será facilmente levado a se desviar. Ignorância é um grande aliado do ritualismo.[29]
  2. Meu segundo conselho é este: Cuidado para não subestimar o perigo em que a Igreja da Inglaterra se encontra por causa do ritualismo. Esse perigo, creio, é bem maior do que muitos pensam. Os amigos do ritualismo entre o clero são numerosos, zelosos e, acima de tudo, incansáveis. Muitos ritualistas palmilham terra e mar, e não deixam qualquer detalhe para trás na busca de seus objetivos. Muitos deles, creio, estão determinados a não descansar enquanto não se disser missa na Mesa da Comunhão de cada paróquia, e enquanto não houver um confessionário em cada igreja, e paramentos sacrificiais cingindo cada ministro. Não fiquem parados de braços cruzados. Se devemos preservar o protestantismo na Igreja da Inglaterra, se devemos manter viva a chama que acenderam os mártires, devemos nos agarrar a nossas armas e lutar. Indolência e sentimento de segurança são outro grande aliado do ritualismo.

 

  1. Meu terceiro conselho é este: tenha firme em mente que os princípios evangélicos e protestantes são os verdadeiros princípios da Igreja da Inglaterra, e os únicos que manterão a Igreja viva. São eles os princípios de nossos Trinta e Nove Artigos e da gloriosa Reforma. São os únicos princípios benéficos para nossas almas. Procissões, incenso, flores, paramentos extravagantes, prostrações, posições e sinais das cruzes e coisas do tipo podem atrair multidões de pessoas boquiabertas por um tempo, como qualquer outro espetáculo. Mas não convencem o pecador, não saram a consciência, não edificam os santos, não levam a Cristo. Nada pode substituir a palavra do Evangelho e a graça de Deus. Nunca se envergonhem da simples religião evangélica. Falta de confiança é outro grande aliado do ritualismo.

  1. Meu quarto conselho é este: Não se apressem em deixar a Igreja da Inglaterra porque muitos de seus ministros são infiéis. É uma prática fácil e barata para os membros de nossas igrejas fugir do problema e correr na hora do conflito; mas isso não é nem valente, nem cristão, nem justo. É um atalho para fora das dificuldades, lançar o bote salva-vidas enquanto a nau está a perigo e deixar seus companheiros afundarem. Não é essa a conduta de um cidadão inglês. Como Nelson disse em Trafalgar, “A Inglaterra espera que cada homem cumpra com seu dever”, e assim espera a Igreja da Inglaterra de cada membro protestante da Igreja que cumpra seu dever, e lute pela nau. Não entremos no jogo de nosso inimigo, ao desertar o bom e velho forte, enquanto os Artigos permanecerem os mesmos, e perdurar a liberdade nos púlpitos. Não abandonemos nossa mãe nos dias de tribulação. Antes, como Venn, Romaine, Grimshaw e Berridge, guarneçamos as muralhas, lancemos mão de nossas armas, hasteemos nosso estandarte e lutemos enquanto pudermos ficar de pé. Espias e desertores, sempre a fazer manobras estratégicas na retaguarda, são a fraqueza de um exército. Homens com coração de ratos são os maiores aliados do ritualismo.

 

  1. Meu último conselho é este. Trabalhem em público e em particular, e trabalhem duro, na defesa da verdade de Cristo e da manutenção dos princípios da Reforma na Igreja da Inglaterra. Mas trabalhem unidos, de uma forma organizada e sistemática, ou farão muito pouco. “Homens com mosquetes” não formam um exército, como os franceses descobriram duramente, e os membros evangélicos da Igreja, sem organização, farão muito pouco na oposição ao ritualismo. Associem-se, unam-se, organizem-se, trabalhem juntos, mantenham-se unidos, e muito farão. Trabalhem em amor, com gentileza, e levem em consideração a total ignorância que muitos ritualistas têm da natureza dos princípios evangélicos. Muitos deles, infelizmente, parecem não conhecer mais das posições dos membros evangélicos da Igreja do que um lavrador iletrado conhece das ruas de Londres. Falam e escrevem como se jamais tivessem ouvido de qualquer escola teológica senão a deles próprios. Lembrem-se disse e lidem com eles em amor. Mas ao trabalhar com caridade, amor, cortesia, bondade, não se esqueçam de trabalhar duro. Trabalhem por amor a sua Igreja; a Igreja de Hooper e Latimer merece algum esforço. Trabalhem por amor de seus filhos; cuidado para que, quando vocês morrerem, eles não fiquem como ovelhas sem pastor. Trabalhem por amor de seu País; pois seu protestantismo é a chave de sua força, e perdido, será como Sansão sem seus cabelos. Trabalhem, afinal, por amor de suas próprias almas. Far-lhes-á bem. Dará bravura a suas virtudes. Ajudará a conter o pecado. Não é o exercício, e sim o sedentarismo, que faz mal ao corpo.

Pensem nessas coisas, e não as desprezem. Alguns homens bradam “Paz! Paz! Silêncio! Abram mão de tudo pela paz!”. Eu respondo: não pode haver verdadeira paz enquanto nossa igreja tolerar e alimentar o papado. Será a paz na Igreja tão doce que valha a pena comprar ela à custa da verdade? Será uma vida tranquila tão preciosa que, de modo a assegurá-la, toleraremos a missa e a confissão auricular? Será? Ou não?

Deus nos livre de que um dia sacrifiquemos a verdade por amor da paz! Paz na Igreja sem verdade é um bem inútil. Não sei o que pensam os outros. Minha opinião está formada. Cheguei a uma conclusão decisiva. Eu digo: deem-me uma Igreja Estatal realmente evangélica e protestante, ou não me deem Igreja Estatal nenhuma. Quando a Igreja reformada da Inglaterra renunciar a seus princípios protestantes, e tornar ao papado, sua vida e glória terão partido, e não valerá a pena preservá-la. Ela será uma ofensa a Deus, e não um refúgio para todo cristão verdadeiro.

NOTA

(citada na Nota 4 por J.C.Ryle nesse Artigo)

A Polêmica a respeito da Santa Ceia, todos sabemos, é neste momento uma das maiores fontes de divisão e perturbação na Igreja da Inglaterra. Não menos que quatro grandes processos foram abertos por causa deste assunto. Processos popularmente conhecidos como o caso Mackonochie, o caso Purchass, o caso Bennett e o caso Ridsdale. Em tal crise, pode ser interessante a alguns leitores conhecerem a opinião de alguns de nossos mais bem conhecidos teólogos ingleses a respeito dos pontos controvertidos.

Darei catorze citações de catorze homens de não pouca autoridade, e peço ao leitor que os leve em consideração.

1. Arcebispo Cranmer, no Prefácio a sua Answer to Gardiner, diz:

“Eles (os romanistas) dizem que Cristo está corporeamente sob ou dentro das formas de pão e de vinho; dizemos que Cristo não está ali, nem corporeamente, nem espiritualmente. Mas naqueles que dignamente comem e bebem do pão e do vinho ele está espiritualmente, enquanto corporalmente está no céu. Não digo que Cristo esteja espiritualmente quer na mesa, quer no pão e vinho que sobre ela dispomos, mas que ele está presente na ministração e na recepção dessa Santa Ceia, segundo sua própria instituição e ordenança.” (Cf. Goode on the Eucharist, v. II, p. 772).

  1. Bispo Ridley, em sua Disputation at Oxford, diz:

“As circunstâncias das Escrituras, a analogia e proporção dos Sacramentos e o testemunho fiel dos Pais devem nos guiar na busca do significado das Escrituras a respeito dos Sacramentos. Mas as palavras da Ceia do Senhor, as circunstâncias das Escrituras, a analogia dos Sacramentos e os ditos dos Pais direta e efetivamente demonstram uma linguagem figurativa nas palavras da Ceia do Senhor. Portanto, um sentido e significado figurado é especialmente recebido nas palavras ‘Este é meu corpo’” (Cf. Goode on the Eucharist, v. II, p. 766).

E, de novo, na mesma Disputation at Oxford, diz da doutrina romanista da Presença Real:

“Ela destrói e remove a instituição da Ceia do Senhor, que foi determinada para ser usada e continuada até que o próprio Senhor venha. Se Ele, portanto, está materialmente presente no corpo de Sua carne, então deve cessar a Ceia, pois não se faz memorial de algo presente, e sim de algo passado e ausente. E, como um dos Pais disse, ‘uma figura é vã quando a coisa figurada está presente’”. (Cf. Martyrs, de Foxe).

 

  1. Bispo Hooper, em seu Brief and clear confession of the Christian faith, diz:

“Creio este Sacramento inteiro consiste no seu uso; de modo que sem o uso adequado, o pão e o vinho em nada diferem de pão e vinho comuns normalmente consumidos; portanto, não creio que o corpo de Cristo possa ser contido, oculto, inserido no pão, nem o sangue no vinho, sob o vinho ou com o vinho. Mas creio e confesso que o único corpo de Cristo está no céu, à destra do Pai, e que sempre e em todas as vezes que consumimos deste pão e vinho segundo a ordem e instituição de Cristo, nós verdadeiramente e de fato recebemos Seu corpo e sangue.” (Hooper’s Works, Parker Society Edition, v. II, p. 48)

  1. Bispo Latimer, em sua Disputation at Oxford, diz:

“No Sacramento não é necessária nenhuma outra presença de Cristo, que não a espiritual. E esta presença basta para o cristão, e a presença pela qual permanecemos em Cristo, e Cristo em nós, para a obtenção da vida eterna se perseverarmos no verdadeiro Evangelho; que esta mesma presença se pode chamar de presença real, porque para o crente fiel ali está o corpo de Cristo, real e espiritual.” (Latimer Works: Parker Society Edition, v. II, p. 252).

E de novo diz, na mesma polêmica:

“Cristo jamais disse uma palavra a respeito de sacrifício na execução da missa; nem prometeu a seus ouvintes qualquer recompensa, senão aos idólatras com o diabo e seus anjos, a menos que se arrependam depressa. Assim, sacerdotes sacrificadores devem acabar para sempre, pois agora todos devem oferecer seus próprios corpos como um sacrifício vivo, santo e agradável perante Deus. A Santa Ceia foi instituída para provocar em nós ações de graças, e para nos despertar por meio da pregação do Evangelho, para relembrar sua morte até que ele venha.” (Works, II, 256).

E novamente, em seu último exame:

“Há uma mudança no pão e no vinho, e tal mudança que poder algum poderia efetuar, senão a onipotência de Deus, de modo que o que antes era pão, agora tem a dignidade de exibir o corpo de Cristo. Não obstante, o pão ainda é pão, e o vinho, ainda vinho, pois a mudança não é na natureza, e sim na dignidade.” (Works, II, 286).

  1. Bispo Jewell, em sua obra acerca dos Sacramentos, diz:

“Examinemos que diferença há entre o corpo de Cristo e o sacramento do seu corpo. A diferença é esta: um sacramento é uma figura, ou sinal; o corpo de Cristo figurado ou sinalizado. O pão sacramental é pão, não é o corpo de Cristo; o corpo de Cristo é carne, não é pão. O pão está [cá] embaixo; o corpo está [lá] em cima. O pão está sobre a mesa; o corpo está no céu. O pão está na boca; o corpo está no coração. O pão alimenta o corpo; o corpo alimenta a alma. O pão se desfaz em nada; o corpo é imortal e não perecerá. O pão é vil; o corpo de Cristo é glorioso. Tal é a diferença que há entre o pão que é sacramento do corpo, e o corpo de Cristo propriamente dito. O Sacramento é recebido tanto por ímpios quanto pelos fieis; o corpo só é recebido pelos fieis. O Sacramento pode ser recebido para juízo; o corpo não pode ser recebido, senão para salvação. Sem o Sacramento, podemos ser salvos; mas sem o corpo de Cristo, não temos salvação, não podemos ser salvos.” (Jewell’s works, v. IV, Parker Society Edition, p. 1.121).

  1. Richard Hooker, em sua Ecclesiastical polity, diz:

“A presença real do preciosíssimo corpo e sangue de Cristo não deve ser buscada no Sacramento, mas naquele que dignamente recebe do Sacramento. E com isto concorda a própria ordem das palavras de nosso Salvador. Primeiro, ‘Tomai e comei’, e então, ‘Este é meu corpo, partido por vós’. Primeiro, ‘Bebei dele todos’, depois ‘Este é o meu sangue da Nova Aliança, que é derramado por muitos para a remissão dos pecados’. Não vejo de que forma se pode extrair das palavras de Cristo quando ou como o pão seja Seu corpo ou o vinho Seu sangue, senão no coração e na alma daquele que os recebe. Quanto aos Sacramentos, eles de fato exibem, mas de lugar nenhum podemos extrair do que está escrito que eles sejam ou contenham em si mesmos as graças que por meio deles apraz a Deus conceder.” (Hooker, Ecclesiastical polity, livro V, p. 67).

  1. Jeremy Taylor, em seu livro a respeito da Presença Real (1654, pp. 13-15), diz:

“Dizemos que o corpo de Cristo está de fato no Sacramento, mas espiritualmente. Os católicos romanos dizem que ele está de fato, mas espiritualmente. Pois Belarmino dirá, com ousadia, que tal palavra pode ser empregada nesse assunto. Onde estará a diferença? Aqui, por espiritualmente, eles querem dizer “como um espírito”. Nós, por espiritualmente, queremos dizer, presente ao nosso espírito apenas. Eles dizem que o corpo de Cristo está verdadeiramente presente ali como estava sobre a cruz, mas não da mesma forma que qualquer pessoa, mas da forma com que um anjo se faz presente em um lugar. Esse é o espiritualmente deles. Mas nós, pela real presença espiritual de Cristo, compreendemos que Cristo se faz presente, como o Espírito de Deus se faz presente nos corações dos fieis, por bênção e graça; e isto é tudo o que significamos além da presença tópica e figurativa.”

 

  1. O Arcebispo Usher, em seu ‘Sermão perante a Câmara dos Comuns’, disse:

“No Sacramento da Ceia do Senhor, o pão e o vinho não são mudados em substância, deixando de ser aquilo que é servido nas mesas comuns; mas por respeito ao uso sagrado para o qual são consagrados, eles agora diferem tanto do pão e do vinho comuns quanto o céu difere da terra. Nenhum deles deve ser considerado especialmente significativo, mas eles verdadeiramente exibem os elementos celestiais com os quais estão ligados, visto que determinados por Deus para serem o meio de transmiti-los para nós, e de nos investir de fato na posse deles. De modo que no uso desta santa ordenança, tão verdadeiramente quanto o homem com sua mão e boca física recebe das criações terrenas do pão e do vinho, assim, verdadeiramente, com sua mão e boca espirituais (se os tiver) recebe do corpo e do sangue de Cristo. E esta é a real e substancial presença que afirmamos haver interiormente neste ato sagrado.”

 

  1. Bispo Beveridge, em seu comentário ao Artigo 28, diz:

“Se o pão não se transforma materialmente no corpo de Cristo, então o corpo de Cristo não está materialmente presente ali; e se não está materialmente presente, é impossível que seja materialmente tomado e recebido em nossos corpos, como acontece com o pão.”

E, novamente, diz:

“Não vejo como se possa negar que Cristo comeu do pão do qual disse ‘Este é meu corpo’; e se o comeu, e o comeu fisicamente (a saber, comeu do Seu corpo como nós comemos pão), então ele comeu-se a si mesmo, e fez de um corpo dois, e então os reuniu novamente em um, ao colocar seu corpo em seu corpo, e seu corpo todo em uma parte de seu corpo, a saber, seu estômago. E assim devemos pensar que ele não apenas teve dois corpos, mas dois corpos um dentro do outro, sim, de modo que um foi devorado pelo outro; o absurdo de tais proposições e outras semelhantes, quem tem meio cérebro[30] facilmente percebe. De modo que se deve admitir que é de uma forma espiritual que o Sacramento foi instituído, e por consequência, é de uma forma espiritual que o Sacramento deve ser recebido.” (Beveridge on the Articles.Ed. Oxford: 1846, pp. 482-486).

 

  1. Waterland diz:

“Os Pais bem compreenderam que conceber o corpo natural de Cristo como o sacrifício material da Eucaristia não seria apenas absurdo à razão, mas tremendamente presunçoso e profano; e que conceber os sinais externos como um sacrifício propriamente dito, um sacrifício material, seria de todo contrário aos princípios do evangelho, degradando o sacrifício cristão em um sacrifício judaico, tanto em valor quanto em dignidade. O caminho correto, portanto, é compreender que o sacrifício é espiritual, e que não poderia ser diferente segundo os princípios do Evangelho.” (Works, v. IV, p. 762).

“Ninguém tem qualquer autoridade ou direito de oferecer Cristo como sacrifício, quer material ou simbolicamente, senão o próprio Cristo. Tal sacrifício é Dele, não nosso; oferecido em nosso favor, não por nós, a Deus Pai.” (Works, v. IV, p. 753).

“As palavras do Catecismo, recebidos de fato e de verdade pelos fieis’ devem ser corretamente interpretadas como uma real participação dos benefícios adquiridos pela morte de Cristo. O corpo e o sangue de Cristo são tomados e recebidos pelos fieis, não corporalmente, não internamente, mas de fato e de verdade, a saber, em seus efeitos. Os símbolos sagrados não são sinais desnudos, não são figuras falsas de algo ausente; mas a força, a graça, a virtude e os benefícios do corpo de Cristo partido e do sangue derramado, a saber, [os efeitos] de sua paixão, estão, com efeito, materialmente presentes com todos quantos dignamente os recebem. Esta é toda a presença real que nossa Igreja ensina.” (Waterland’s works. Oxford: 1843. v. VI, p. 42).

  1. Bispo Burnet, em seu comentário ao Artigo 28, diz:

“Afirmamos uma presença real do corpo e do sangue de Cristo: mas não de Seu corpo conforme agora glorificado no céu, mas de Seu corpo conforme partido na cruz, quando Seu sangue foi derramado e separado daquele: a saber, Sua morte, com seus méritos e efeitos, estão no ato visível de aliança oferecido no Sacramento a todos os fieis crentes. Por real compreendemos verdadeira, em contraste com a ficção e a imaginação, e com as sombras que existiam na dispensação mosaica, na qual o maná, a pedra, a serpente de bronze, mas imensuravelmente a nuvem de glória, eram tipos e sombras do Messias que estava por vir, com quem vieram a graça e a verdade, a saber, uma manifestação maravilhosíssima da misericórdia e da graça de Deus, e uma conformação das promessas feitas sob a lei. Neste sentido, reconhecemos uma Presença Real de Cristo no Sacramento. Estamos convencidos, contudo, de que nossos primeiros Reformadores estavam corretos a respeito do uso da expressão ‘Presença Real’, a saber, que era melhor deixar cair em desuso de que continuá-la, visto que seu uso e a ideia que naturalmente surge da sua acepção comum podem se arraigar e alimentar superstição, mais do que as maiores explicações que se dê a seu respeito são capazes de evitar.”

  1. O Deão Aldrich, da Christ Church, diz:

“A Igreja da Inglaterra sabiamente abandonou o uso da expressão ‘Presença Real’ em todos os livros produzidos por sua autoridade. Não a encontramos recomendada na Liturgia, nem nos Artigos, nem nas Homilias, nem no Catecismo da Igreja, nem no de Nowell. Pois, embora encontrada na Liturgia e nos Artigos de 1552, é mencionada em ambos como uma expressão dos papistas, e rejeitada pelo abuso que estes fizeram dela. De modo que, se qualquer membro da Igreja da Inglaterra a emprega, ele está indo além do que a Igreja determina. Se qualquer um a rejeita, tem o exemplo da Igreja para respaldá-lo; e em muito contribuiria para a paz da cristandade se todos os homens se pautassem por tal excelente padrão.” (Dean Aldrich’s “Reply to Two Discourses”. Oxford, 1682, 4to, pp. 13-18).

  1. Henry Phillpotts, Bispo de Exeter, em sua carta a Charles Butler, diz:

“A Igreja de Roma defende que o corpo e o sangue de Cristo se fazem presentes sob os acidentes do pão e do vinho; a Igreja da Inglaterra defende que a presença material [do corpo e do sangue de Cristo] se dá na alma do comungante [presente] ao Sacramento da Ceia do Senhor.”

“Ela defende que, depois da consagração do pão e do vinho, eles não são transmutados em sua natureza, mas em seu uso; que, ao invés de nutrir apenas nossos corpos, eles agora são instrumentos pelos quais, se dignamente recebidos, Deus entrega a nossas almas o corpo e o sangue de Cristo para as nutrir e sustentar; que esta não é uma manifestação fictícia ou imaginária de nosso Redentor crucificado a nós, mas uma [manifestação] real, embora espiritual; ainda mais real, de fato, porque presente com seus efeitos, do que uma manifestação carnal e um comer carnal poderiam jamais produzir, pois a carne de nada aproveita.”

“Por semelhante modo, portanto, como Nosso Senhor em pessoa disse, ‘Eu sou o verdadeiro pão que desceu do céu’ (não significando com isso que ele era um pedaço de massa assada, ou de maná, mas que é o verdadeiro meio de sustento da vida humana, que é espiritual, não corpórea), de modo que, no Sacramento, ao que dignamente recebe dos elementos consagrados, embora meramente pão e vinho em sua natureza, são dados verdadeira, real e efetivamente o corpo crucificado e o sangue derramado de Cristo; o corpo e o sangue que foram os instrumentos da redenção do homem, e dos quais dependem unicamente a nossa vida e força espiritual. É neste sentido que Jesus crucificado se faz presente no Sacramento de sua Ceia, não no pão e no vinho, não com o pão e o vinho, nem sob seus acidentes, mas nas almas dos comungantes; não de maneira carnal, mas em efeito e em fé, e portanto, da maneira mais real.” (Philpotts’ letter to Butler. 8vo edit., 1825, pp. 235-236).

 

  1. O Arcebispo Longley diz, em sua última Parênese, impressa e publicada postumamente em 1866:

“A doutrina da Presença Real é, de certa forma, a doutrina da Igreja da Inglaterra. Ela afirma que o corpo e o sangue de Cristo são ‘de fato e de verdade tomados e recebidos pelos fieis na Ceia do Senhor’. E ela afirma igualmente que tal presença não é material ou corpórea, mas que o corpo de Cristo ‘é dado, tomado e comido na Ceia de uma maneira unicamente espiritual e celestial’ (Art. 28). A presença de Cristo se dá em efeito para todos os intentos e propósitos pelos quais seu corpo foi partido e seu sangue vertido. Quanto à presença em qualquer outro lugar, que não no coração do crente, a Igreja da Inglaterra silencia, e as palavras de Hooker, portanto, representam sua posição: ‘A presença real do preciosíssimo corpo e sangue de Cristo não deve ser buscada no Sacramento, mas naquele que dignamente recebe do Sacramento.’”.

Agora concluo todo o estudo com a seguinte notável citação, para a qual recomendo a especial atenção de meus leitores. Vem de um panfleto do Rev. W. Maskell:

“As fortes afirmações” do Livro de Oração na Liturgia da Comunhão, “em seu mais direto e óbvio significado, apoiam a posição low [church], mantida e defendida por tantos dentre nosso clero, de que a Presença Real não é uma doutrina aprovada pela Igreja da Inglaterra, e que não se distingue do erro romanista, como eles o chamam, da Transubstanciação.” (De A Second Letter on ‘the present position of the High Church Party in the Church of England”, pelo Rev. W. Maskell, vigário da Igreja de S. Maria, Torquay, p. 62, 1850).

Não comentarei as citações acima. Elas falam por si mesmas. Elas provam, de qualquer forma, que as posições acerca da Ceia do Senhor comumente defendidas pelos assim chamados Evangélicos na nossa Igreja não são novas. São “veredas antigas”, marcadas pelos pés de alguns dos melhores teólogos da Igreja da Inglaterra.

ORE PARA QUE O ESPÍRITO SANTO USE ESSE SERMÃO PARA EDIFICAÇÃO DE MUITOS E SALVAÇÃO DE PECADORES

FONTE:
Traduzido de

http://archive.org/stream/principlesforchu00ryleuoft/principlesforchu00ryleuoft_djvu.txt

Todo direito de tradução protegido por lei internacional de domínio público

Tradução: Eduardo Henrique Chagas

Revisão: Armando Marcos

Capa: Salvio Bhering

Projeto Ryle – Anunciando a Verdade Evangélica.

Projeto de tradução de sermões, tratados e livros do ministro anglicano John Charles Ryle, mais conhecido como J.C.Ryle (1816-1900) para glória de Deus em Cristo Jesus, pelo poder do Espírito Santo, para edificação da Igreja e salvação e conversão de incrédulos de seus pecados.

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[1] Em inglês, “o livro do registro das crônicas”, N.T.

[2] [De Cristo na Eucaristia]. “Real” no sentido de “física”, “material” (do latim res, “coisa”), como creem luteranos e romanistas. O anglicanismo tradicional defende a “presença verdadeira”, mas espiritual, sacramental, não física, de Cristo na Eucaristia, assim como os demais reformados. Nota do Tradutor

[3] Rubrica Negra: instrução do Livro de Oração Comum 1552 que foi incluída por insistência de pessoas como John Knox para evitar justamente a confusão no relativo a adoração ou não dos elementos da Santa comunhão. O Texto da rubrica foi posto por Thomas Cranmer posteriormente a impressão do livro, por isso da cor diferente. O texto citado por Ryle é na versão de 1662. Nota do Revisor

[4] Aqueles que se interessarem em estudar a polêmica a respeito da Santa Ceia estão convidados a ler a NOTA que inclui no final deste artigo. Nota do bispo Ryle

[5] De leste a oeste e de norte a sul, N.T.

[6] Thomas Becket foi um arcebispo da Cantuária que foi assassinato por partidários do rei Henrique II, em 1170, rei a quem Becket criticava. Ele foi morto na Catedral de Cantuária, e depois foi considerado mártir e santo por muitos, se tornando um santo muito popular do catolicismo romano medieval. Nota do Revisor

[7] Confissão auricular é um doutrina da Igreja Católica Romana, em que deve-se, pelo menos uma vez ao ano, confessar os pecados para um sacerdote. N.R

[8] O panfleto de Calvino Das vantagens de um inventário de relíquias é uma interessante e educativa coleção de informações sobre relíquias romanistas, e merece ser melhor conhecido. (Bispo Ryle)

[9] O Lollardismo foi um movimento político e religioso dos finais do século XIV e inícios do século XV em Inglaterra. As suas exigências eram primeiramente a reforma da Igreja Católica. (Wikipédia)

[10] No original, “earnestness”, N.T.

[11] Stephen Gardiner foi um político e bispo católico inglês durante o período da Reforma inglesa, que atuou como Lord Chanceler durante o reinado da rainha Maria I de Inglaterra. (Wikipédia)

[12] Richard Hooper foi um clérigo anglicano Inglês, Bispo de Gloucester e Worcester . Um defensor da Reforma Inglesa de linha calvinista prioritariamente, ele foi martirizado durante o reino de Maria a Sanguinária. N.R

[13] A Comunidade da Inglaterra (em inglês: Commonwealth of England) foi um governo republicano/ditatorial que exerceu o poder no Reino Unido entre 1649 e 1660. Após o regicídio de Carlos I em 30 de janeiro de 1649, sua existência foi inicialmente declarada através de um Ato declarando a Inglaterra como Comunidade pelo parlamento em 19 de maio de 1649, sob poder do puritano Oliver Cronwell. (Wikipédia)

[14] Referência aos teólogos da época dos reinados de Carlos I e Carlos II. Nota do revisor

[15] O Episcopado. N.R

[16][16] Em 1689, com o Ato de Tolerância de 1689, depois da Revolução Gloriosa que destitui Carlos II e colocou Willian Orange e Maria, sua esposa, como reis da Inglaterra. N.R

[17] No original, “independentes”, N.T.

[18] “Igrejas” eram as congregações oficiais da Igreja da Inglaterra, e “capelas” as congregações não-conformistas. N.T.

[19] A Sra. Partington de Sidmouth, que morava à beira-mar, citada em famoso discurso de Sydney Smith à Casa dos Lordes, por tentar conter o Atlântico durante uma tempestade usando um esfregão, como exemplo de conduta valente e sincera, mas em última análise, inútil. N.T.

[20] As Homilias são sermões autorizados pelos 39 Artigos compostos em sua maioria por Thomas Cranmer e o bispo John Jewel, os quais em seu conteúdo demonstram sólida doutrina reformada. N.R

[21] Na Igreja Estatal da Inglaterra, cada paróquia sobrevivia com as rendas de suas terras e bens, bem como com a proteção e o auxílio financeiro da pequena-nobreza local, que em troca recebia o direito de escolher o pároco (mecenato, em inglês, patronage). N.T.

[22] Centro de convenções no coração de Londres, onde ocorriam, no tempo de Ryle, grandes congressos, palestras e eventos científicos, culturais e religiosos, muitos não conformistas. Spurgeon pregou várias vezes em Exerter Hall antes da construção do Tabernáculo Metropolitano. N.T e N.R

[23] Àqueles que desejarem ver esta parte de meu estudo discutida mais a fundo, encaminho-os ao volume que produzi em 1869, intitulado Christian leaders of the last century [Líderes cristãos do último século]. Bispo Ryle

[24] Principal hinário britânico até os dias de hoje, originalmente preparado por ministros do partido ritualista. Os ritualistas mais tendentes ao romanismo, contudo, preferem hoje o English Hymnal. N.T.

[25] Em inglês, rood screens, grades de madeira que separavam o presbitério da nave, em cujo alto, nas igrejas britânicas, invariavelmente havia um cruficixo ladeado por imagens da Virgem Maria e de São João, cena típica da Paixão de Cristo, com ou sem os bandidos crucificados. N. T.

[26] Antes de 1833, a divisão High Church/Low Church se referia às posições do clero com relação à estrita fidelidade à monarquia, ao episcopado, ao Livro de Oração e à Igreja Estatal (High Church), aqueles que se opunham ou davam menor importância a esses marcos do anglicanismo britânico, alinhando-se mais com os não-conformistas (Low Church) e os moderados entre tais posições (Broad Church). No tempo de Ryle e até os dias de hoje, a legenda High Church foi tomada para designar o movimento ritualista em suas diferentes vertentes. N.T.

[27] Se alguém supõe que eu desejo estreitar os limites da membresia da Igreja da Inglaterra e confiná-los a um só partido, engana-se totalmente. Jamais conheci qualquer evangélico sensato que não admitisse abertamente que a Igreja da Inglaterra é uma igreja abrangente, e que ela deve incluir em seus quadros as três antigas escolas de opinião conhecidas como High, Low e Broad. Bispo Ryle

[28] “Os procedimentos da English Church Union destruirão a Igreja inglesa, se forem estimulados em seu rumo atual.” (Carta do Bispo de Bath e Wells, dezembro de 1870). Bispo Ryle

[29] Alguns se comprazem em debochar de Martyrs de Foxe, dizendo que Foxe não tem credibilidade. Ataques desse tipo são prática antiga que os amigos do papado nunca abandonaram. Quem quiser pode verificar a opinião que homens do calibre de Parker, Grindal, Whitgift, Fuller, Strype, Burnet, Soames, Dr. Wordsworth, Southey e Froude tinham de Foxe no prefácio de meu Light from old times [Luz de tempos antigos]. Verão que a estima por Foxe da parte de tão eminentes bispos e escritores difere muito da de modernos escritores. Bispo Ryle

[30] Literalmente, “meio olho”, N.T.